domingo, outubro 24, 2010

Amor Dói: Renascimento (2)

Enquanto andamos mais um pouco pelos corredores, contei minha história àquele homem tão solícito, e ocasionalmente ele me interrompia, mas só pra tirar dúvidas. Nos alojamos no morgue, e fui vendo que ele procurava entender melhor as motivações da Ariana, e me surpreendi às vezes defendendo, às vezes criticando as atitudes dela. O plantão dele estava bem devagar mesmo, porque não fomos interrompidos em momento nenhum, exceto por um choro de mulher, ocasionalmente. Fiquei imaginando quando seria o horário de "alto tráfego" naquele ramo de trabalho. Terminei minha história, naquele momento em que fui salvo por ele.

Zé Pedro se aprumou, estava encostado nas gavetas. Durante minha história, andara por toda aquela espaçosa sala de autópsia, ajeitando os instrumentos, limpando mesas, e agora parou. Acendeu um cigarro, matutando, e disse, "você pretende seguir essa promessa?". "Claro", respondi, "é importante que esse tipo de coisa deixe de acontecer, e a gentileza pode mudar o mundo de muita gente".

A sala era iluminada também por uma generosa clarabóia, cujas telhas de vidro do meio eram de um branco leitoso, e as das bordas eram verdes. Naquele finzinho de tarde, o legista ficava com uma luz verde-claro se impondo sobre ele. Aliás sobre tudo ao meu redor, e me imaginei sendo visto por ele em lamúrias verde-claro de adolescente. Daquela imobilidade enfumaçada, Zé Pedro parecia estar sopesando sua própria consciência.

Ninguém olhava daquele jeito, especialmente para mim. Fiquei fascinado demais para interromper os devaneios dele, e não sei dizer quanto tempo isso durou.Então, aquele homem esculpido em esmeralda subitamente voltou a se mexer, ainda com o cigarro a meio caminho do fim. Ficou ereto e me pediu que abrisse a gaveta 5-E.

Olhei para a fileira de gavetas onde se guardavam os corpos. E tornei a olhar para ele. Entendi o que ele disse, mas não entendi o que significava essa autorização. Ainda gesticulei, mais do que falei, um tímido "eu?", que ele confirmou com um meneio de cabeça aquiescente.

Olhei para a gaveta. A etiqueta com borda vermelha, onde a mão escreveu com cuidado o cinco e a letra E maiúscula, separados por um hífen determinado. A alça de metal veio facilmente, revelando o volume que um lençol branco guardava.

Zé Pedro apareceu em silêncio ao meu lado enquanto eu hesitava. Levantou um dos lados do lençol, revelando a cabeça e os ombros do corpo de uma mulher jovem.

A pele morena, além da genética, era bronzeada por repetidos banhos de sol. Podia-se notar pela marca de biquini nos ombros. Os cabelos negros, longos e lisos emolduravam o rosto sereno e de proporções convidativas. Os lábios estavam secos, gretados, mas compunham uma boca carnuda. O nariz, pequeno, seguia reto no rosto até formar uma delicada almofada para as narinas.

Sem que eu percebesse, Zé Pedro voltou a se encostar na maca de rodas travadas onde estivera fumando. Quando consegui vencer o magnetismo daquela mulher, olhei para ele.

Naquele momento, começava a sentir um impulso de indignação. Aos treze anos, não entendemos rapidamente expressões, ainda mais quando são mistas. Quando nossos olhares se cruzaram, ele disse, "a vida é triste, mas sabe contar piadas, não?" e continuou, já que meu silêncio era a única resposta que eu sabia oferecer, "uma linda moça, encontrada caída no chão, em Copacabana, chegou aqui um pouco antes de você. Não tinha documentos, só  alguns anéis e um colar. Vestia biquini, canga de praia, sandálias e não carregava bolsa."

Tornei a olhar para ela. Serena. Parecia dormir, não morta. Fiquei constrangido, porque o homem que falava comigo me salvou, mas também ia violar esse corpo que devia virar estátua. Não que ele fosse violar, tipo vilão de filme, mas o trabalho dele é achar a verdade. Anotar numa ficha o porquê dessa moça, cândida e bela, ter sido levada do mundo dos vivos ainda no frescor.

Hoje, entendo que Zé Pedro estava apenas tentando me contar a dureza do trabalho dele. As coisas que ele via, todos os dias, somavam um ângulo da vida completamente diferente daqueles que estamos acostumados. Naquelas macas iam e vinham as pessoas que determinavam o lado que o mundo girava, as pessoas que alimentavam as caldeiras, as que davam respeito, as que tiravam o respeito, todas. Todos nós. E ele estava tentando me contar a piada.

Mas naquele momento, eu vi uma criatura má. E estava diante de algo que, em contraste com a moça serena à minha frente, parecia crua, bruta, insensível. E meus hormônios de adolescente, pra cima e pra baixo no meu organismo, não me permitiam sintetizar em uma frase decente o que queria falar, não gritar, para essa critatura, esse Tanatos do Centro do Rio. A fala engasgava, eu estava indignado, Zé Pedro tentava entender o que acontecia, e a moça se mexeu na maca.

Ela se mexeu.


Foi uma ajeitada, como se estivesse dormindo nua apenas. Mas de repente, a sala de autópsia foi ficando mais escura, mais alta, e nem notei que bati com a cabeça enquanto desmaiava.

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Uma vez a gente ficou imaginando que desenho da Disney nos representava. Eu disse que ela com certeza era a Bela, porque adorava ler, ad...