Eu sempre quis, desde que entendi o que era, ser xamã. Curar as pessoas, vê-las crescendo, ajudar no delicado tropegar a humanidade a se tornar melhor do que é.
É engraçado eu falando nisso, porque quem me conhece sabe muito bem que sou uma pessoa carente, chego inclusive a ser chato. Tenho crises de ansiedade cada vez maiores. Tenho os meus problemas e meus diálogos internos viram, muitas vezes, brigas louquérrimas. Mas até onde eu sei, a maioria dos psicólogos também tem essas dificuldades, e por causa delas, são melhores no que fazem. O pior psicólogo que conheci tinha consultório em Ipanema, e problema interno nenhum. Julgava os seus pacientes e a família deles. Dirigia as consultas como o Shermann dirige o Zorra Total e isso não é cura. Nada contra o cara da Globo não, mas ele não está lá pra curar porra nenhuma, certo? Meu ponto é esse.
Outra coisa interessante, tem algumas profissões que são, abnegadamente, servis. Você pode imaginar um cabeleireiro bem de vida, mas não a tal ponto que tenha um palácio. Um diretor de tv que tenha menos que um carro e um imóvel na Zona Sul do Rio, ou seu equivalente em outros estados, não faz sentido. São conceitos que a nossa sociedade nos oferece. Danili Gentilli, de quem não tenho tanta simpatia assim, outro dia desses lascou uma verdade na cara dos outros. Ele já deve ter repetido isso várias vezes, mas eu digo de novo porque a gente ouve mas não escuta. Faz a piada de loura, tudo bem porque loura não é raça nem credo, é uma cor de cabelo. Podemos rir da piada. Outra piada que ele faz, compara um negro a um macaco. Ri quem quer, paga o ingresso pro show dele quem quer, endossa a piada dele quem quer. Se ninguém achasse graça, ele ia procurar outra coisa pra fazer piada, mas ele disse uma coisa interessante. A defesa dele foi que, não sendo político, não sendo jornalista, não sendo filósofo, sociólogo, ele fala a merda que ele quiser, porque ele é comediante.
Gente, é verdade. Quem vai segurar o cara é a bilheteria. Eu não preciso me unir a nada pra acabar com ele. Se ele decidiu ser comediante, é premissa do trabalho dele fazer piadas das quais o público ria, ou então ele morre de fome. Assim como a premissa do padeiro é fazer um pão minimamente comível, senão a outra padaria acaba com ele.
Parece que eu mudei de assunto? Não. É que daqui a pouco vou completar quarenta verões, e realizei muitas coisas importantes pra mim na minha vida, mas não cheguei ainda no meu potencial de servir a sociedade. E não sei se quero, ainda, servir como xamã. Acho que não. Acho que eu comecei a ver tudo com olhos de velho, no sentido de pessoa cansada da vida.
Meio cedo, eu sei, de repente é uma fase. Tomara. Mas veja, eu vi a Dercy Gonçalves ser ela mesma. Vi Rita Lee, Renato Russo, Cazuza, Clodovil, Zé do Caixão, Hebe Camargo, Washington Olivetto, Sérgio Porto, Brizola que fosse. Para cada nome que eu cito, dez ou cem me fogem à memória. E por alguma razão, desde que eu escutei do REM a música It's the end of the world, eu comecei a ter esse sentimento mesmo: as coisas pararam de me ofender diretamente e passaram a me parecer alheias. Como se meu mundo, o que eu me preparei pra viver, tivesse simplesmente acabado, e eu fosse uma visita no mundo dos outros.
Vai daí, portanto, que não me sinto muito mais à vontade para o papel de xamã. Não tenho um molde para oferecer, uma linha para ajudar a manter. Antigamente eu prestava atenção nos carros com farol desnecessariamente aceso, e avisava aos motoristas, pra poder economizar um tiquinho de bateria do consumo geral, e com isso ajudar um nadinha o meio ambiente. Hoje, sinceramente, fico tentando imaginar pra que lado o mautorista vai virar, porque ninguém sabe o que é usar uma seta.
Então, aquele abraço, obrigado e desculpe, parei de me sentir capaz de ajudar. Pelo menos vou me retirar, honestamente, deste patamar da minha vida.