terça-feira, janeiro 19, 2010

Batizado (Ou: amor dói) parte 2

No capítulo anterior, os responsáveis pelo Estranho aqui tinham votado pela intervenção clínica, à revelia.
Mas Ariana havia tomado uma decisão, pelo lado dela: pediu que eu fosse até a casa dela.
Chegando lá encontrei com a mãe, dona Ana, que mal falava comigo ou com a própria filha. Cuidava bastante do próprio trabalho, de tradução, lia muito e passava a maior parte do tempo em casa trancada no próprio quarto. Que, por sinal, era fechado a Papaiz, aquela fechadura de quatro códigos. E esse era o sintoma que dava um ar de seriedade às arruaças que a filha narrava. Isso e um certo ar de alívio quando ela abria a porta e via que era eu...
Ariana preferia esperar que nós aparecêssemos para ajudá-la a comer as refeições macrobióticas da mãe. Lembro que estamos falando do ano de 1990, e tudo que se chamava "macrobiótico" aqui era na verdade "com gosto de terra". Eu que sempre fui um português bom de garfo, que gostava até mesmo de chupar ovos crus direto da geladeira, sentia uma grande dificuldade em encarar aquilo. Mas enfim, o que quis dizer é que ela esperava que aparecêssemos, não nos ligava regularmente. Esse dia ela ligou.
Tinha aquele brilho particular no olhar, e logo que nos livramos do macrô, ela foi direto no quarto, colocou uma roupa qualquer, uma mochila e saímos pra rua. Perguntei o que era aquilo e ela disse, "quero chocolate". O resto do tempo, conversava distraída sobre qualquer bobagem. Fui levando.
Saímos de lá pra Mesbla, que era ali perto, o edifício ainda hoje está lá; e nesse dia eu aprendi com a Ariana a roubar chocolate das lojas.
Foi a coisa mais simples do mundo, ela com a mochila em um só ombro, abria o zíper, e sem olhar sequer para os lados, enfiava duas ou três barras lá dentro, daquelas que tinham 200g. Hoje, seriam as de 170g. Eu, que tinha desenvolvido cleptomania aos oito, e logo em seguida retraído quando fui pego pelo pessoal do mercado, suava em bicas. Nada de mais, suar em bicas sempre fez parte do meu charme. Mas eu tremia tanto que não aguentaria nem um gato morto pelo rabo.
Saímos rindo, nervosos, da Mesbla, e começamos a andar pelas ruas do centro. Quando ela olhou para mim, vi em seu olhar, naqueles olhos azuis, que éramos cúmplices. Senti uma confusão de sentimentos, e imaginava todos os finais possíveis para aquela situação, desde começar a ter superpoderes, até começarmos um namoro. Estávamos no Largo da Carioca, nos sentamos e ela me explicou que o Valdir tinha ido na casa dela, levado uma fita K7 do Legião pra ela escutar, e se declarado pra ela. Eu perguntei, "e daí? Vocês..." e ela respondeu tudo. Não, não estavam nada juntos, ela ficava com um sujeito lá do colégio dela, que por sinal a mãe odiava, e que seria complicado pra ele, o cara do colégio dela, entender que ela sequer via outros garotos: ele era muito violento.
"E se um dia ele me vê te cumprimentando?" eu perguntei, na verdade já antecipando que o final daquela conversa não seria bom. Ela explicou que ele já me conhecia, e não tinha opinião nenhuma sobre mim. Eu podia ir e vir onde quisesse, podia até dormir na mesma cama que ela, que ele tinha certeza que eu não ia fazer nada. Na galera dele tinha um cara assim que nem eu, um banana, não saberia o que fazer com uma garota nem que ganhasse um manual sobre o assunto. Ariana contou isso rindo. Em tom de concordância.

Em minha defesa, posso afirmar que na minha fase das manias, lá aos oito anos, quando fui convencido por uma coifa laminada se aproximando da minha mão a não cultivar a cleptomania, parti para a leitura, e nisso devorei obsessivamente metade da biblioteca da escola municipal onde estudava, inclusive o relatório Kinsey de cabo a rabo; sabia mais sobre corpo humano, sexualidade, orgasmo, sexo do que o tal carinha saberia em toda uma vida. Em teoria. Na prática, ele certamente me daria uma surra. A maldita "pegada", que tanto se fala hoje em dia. Nunca tive.

Ou seja, para Ariana eu era um pouco melhor que um urso BlauBlau: eu retrucava. Engolindo o significado daquele esclarecimento, tive que perguntar, "e quanto ao Valdir?" para ganhar tempo mais do que ouvir a resposta.
O Valdir ganhou um beijo de selinho dela, um abraço bem gostoso, e ela pediu que ele parasse de vê-la por um tempo. Mais tarde, quando perguntado por mim, ele fez questão de insinuar, que "rolou alguma coisa", indicando que pode ter havido sexo, ou o tal beijinho, eu que escolhesse o que acreditar. E que não queria saber mais dela, tinha uma outra mina em vista; nem vou comentar sobre a Cleide, ali mesmo na época o meu amigo estava obviamente tentando se afirmar como um garanhão. Que não era, mas vamos lá, ele tentou com decência. Alguma.
Agora éramos só eu e Ariana. Mesmo sendo um urso de pelúcia falante, dane-se, tínhamos privacidade. Voltamos pra casa dela, e já experimentávamos a liberdade de ter o quarto dela só pra nós, aquele cheiro dela em todos os lugares e coisas. Eu podia esbarrar nela acidentalmente, podíamos começar guerras de travesseiros, o mundo fazia sentido.

Voltei pra casa, feliz, excitado, toda uma vida pela frente. Estava anoitecendo. Foi descendo a Mem de Sá, na altura da Lavradio, que o moleque passou por mim, rasgando a alça da minha mochila e correndo à toda para a mesma direção que eu ia. Ali naquele pedaço, era zona de travestis. A delegacia ficava a duas quadras, mas nada se fazia que envolvesse policiais naqueles lados. Pois é, o garoto deu uns três, talvez quatro passos largos, naquela correria com minhas roupas sujas da ACM, e foi pego por uma loira de longas madeixas, de um metro e noventa. Pego pelo pescoço, suspendido no ar enquanto as perninhas balançavam. O loira encarou os olhos do moleque, bem lá dentro, e disse pra ele "roubar aqui NÃO", numa voz tão grossa que um dia eu queria ter uma assim. Eu senti medo, imagine o moleque. Deve ter se borrado nas calças. Largou a mochila, e quando foi respectivamente largado, continuou na mesma corrida de antes, só um pouco mais motivado.

Reavida minha mochila, cheguei em casa, só para encontrar dona Patranha, com ar grave, me comunicando que teria médico no dia seguinte, meu pai iria me levar. "Que médico?", perguntei. "Urologista", ela respondeu. "Agora toma um banho e vem jantar. Que que houve com sua mochila?".

*** CONTINUA ***

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