terça-feira, fevereiro 02, 2010

Amor Dói: Revanche (2)

Dor. Eu sei que deve parecer chato falar tanto assim dela, mas antes de acordar direito, ela se agarrava em mim, com uma urgência, uma premência! Nada antes parecia tão terrível, aquela mordida em mim permanente, uma ameaça a mim!

Chutei o lençol para fora, como se pudesse fazer alguma coisa a respeito, e olhei para dentro da minha bermuda. Minha múmia em miniatura estava tentando uma ereção! E vagava, perdida, entre minhas pernas, buscando cegamente um caminho para cima que era melhor ela não achar! Eu via as pulsações, e sentia a cada pulsar o anel de pontos apertando... cada vez mais...

A cada manhã, desde que começara a minha puberdade, a ereção matinal era um ritual secreto meu, uma promessa de felicidade num futuro que não tinha data no calendário. Cultuava a capacidade de ser feliz um dia que aquilo representava. Hoje, esse momento feliz poderia ser meu fim, ou ao menos eu pensava isso.

Percebi que a essas alturas, eu acordado, já seria de se esperar que estivesse completamente inflado. Mas o curativo retardara o processo, segurando quase por igual em todos os lados ao mesmo tempo.

Ainda assim, ele avançava. A pele repuxava, um pouco nos pontos, um pouco na cola do esparadrapo, mas mesmo as pontadas cada vez mais intensas não esmoreciam a tentativa de chegar ao céu. A cabeça começava a raciocinar contra, mas o corpo não estava nada disposto a obedecer. Ainda estava despertando, e promovia a ereção iminente como o ritual de sempre.

Comecei a imaginar cenas de horror grotesco. Não tive muita ajuda, porque logo de cara os filmes de Woody Allen, muito populares na época, vieram à tona. Tudo que você sempre quis saber sobre sexo, mas nunca teve coragem de perguntar, quem diria, agora parecia um filme sexy!

Ok. Um suor frio começou a escorrer da testa. Isso significava que meu cérebro estava entendendo a situação de perigo, em um nível mais direto, e tentava me acalmar. Mais uma vez, naqueles poucos anos de vida, eu sentia o cheiro do meu medo, ao mesmo tempo que tentava entender como tanto conhecimento de medicina estivera morando em mim esse tempo todo.

Medicina! É isso! Pra feira de ciências daquele ano, eu fiz um trabalho sobre o cérebro humano, e como meu colégio pecava em provisões de laboratório, eu me meti dentro do IML para conhecer de perto o meu objeto de estudo. Um perito encarregado, ao ouvir meu pedido, sorriu por baixo do bigode grisalho, antevendo minha reação ao que ele poderia me mostrar. Era um negão super gente boa, com fala mansa, aquele tom de voz que o Barry White sabia fazer, e tentou com umas três perguntas me dissuadir de ir pra sala do morgue. Eu até estava tenso com a preocupação dele, mas por mim, nada me preocupava.

Seguimos pelos corredores escuros, mal iluminados. O IML era tudo que se precisava para um filme de zumbis. Era mal preparado, fedia muito, era sujo. E as pessoas que estavam ali por motivos menos científicos que os meus, pausavam lentamente seu luto para olhar aquele moleque andando atrás do encarregado, indo direto para a sala onde se reconheciam cadáveres. E eu ia. Um corpo estava sendo preparado para uma turma de medicina que chegava dali a uma hora. Era um homem, mendigo. Morrera de inanição.

O nome do encarregado era José Pedro. Ele descobriu o corpo, e ficou esperando a minha reação de moleque assustado com um divertimento no olhar.

Não vou mentir: aquilo fedia mesmo. O rosto estava enrugado, e assim como as mãos erguidas, estava com uma expressão de última súplica. Não parecia uma pessoa mais, era um boneco. Como os manequins de loja. O abdome estava todo esticado e afundado, como se ele tivesse perdido os órgãos internos da barriga. Era realmente um zumbi de filme. E já tinha sido um pouco aberto.

Seu José me explicou que tiveram que abrir para confirmar a causa mortis, mas o crânio tinha sido aberto para a aula a seguir. Eu hesitei em pôr as mãos no tampo, que estava apenas encaixado, mas só porque a caspa do mendigo parecia pior do que a minha. Com um quê de surpresa, seu José captou minha intenção e, incrédulo, me ofereceu um par de luvas de látex, me explicando que eu teria que ter certeza de que ia usar: as luvas não eram fornecidas pelo governo, eram compradas pelos médicos, e seria triste ver desperdício de uma única que fosse. Confirmei.

Antes de ir ao meu intento, passei a mão pelo rosto do cadáver. Ainda estava experimentando o tato com as luvas, folgadas pra mim, e queria saber a consistência daquela pele que parecia de cera. Quando toquei o rosto, o tampo se abriu, porque a pressão que o continha era muito tenue.

Observei a consistência rugosa do crânio, com algumas membranas de gordura meio soltas, e vi o molde daquilo que procurava, a massa cinzenta e cheia de nervuras que podia imaginar guerras, amor, poema, receitas de culinária, tristeza, alegria, movimento... e agora estava ali, indiferente, pronta para uma função muito diferente de quaisquer outras que tivesse durante a vida: o esclarecimento.

Aquela lembrança tão detalhada, profunda e macabra, daquela manhã no IML, começou a fazer efeito. Uma paz se fazia sentir, e minha parte convalescente começava a se aquietar. A bandagem estava branca, ótimo sinal. O que quer que tenha me doído, não tinha sangrado tanto a ponto de me assustar. Entendi que estava com muita vontade de ir ao banheiro, e fui sem maiores problemas. E voltei para minhas lembranças.

O engraçado com ambientes limpos à base de formaldeídeo é que o cheiro vira automaticamente uma memória viva. O que quer que tenha te feito cheirar formol, faz com que esse cheiro se entranhe na mente, sem escalas. E com ele, tudo que você fez naquele lugar também ganha um lugar de honra nas suas memórias. Sério. Não importa se você namorou a menina mais linda do colégio, não importa se um teatro de 400 lugares lotados te aplaudiu, não importa se você trocou de corpo ou viajou no tempo, aquele cheiro fica à sua disposição para sempre. Tudo que ele abarcar também.

E eu voltei na lembrança, para ver de novo a expressão de curiosidade de seu José sumir aos poucos, dando lugar à incredulidade. Ele estava assistindo enquanto eu tocava no cérebro exposto à minha frente. Eu tentei, com sutileza, separar os nódulos na região central do cérebro com o dedo, e não conseguindo, desisti. Foi quando aquilo aconteceu.

Cutuquei uma parte mais traseira do cérebro, com aquele mesmo primeiro intento, e o cadáver reagiu. A mão direita afrouxou um pouco mais a postura de garra, e um suspiro longo e suave saiu da sua boca. Seu José arregalou os olhos, e começou a se aproximar de mim com a clara intenção de acabar com aquela loucura. Eu segurei o tampo solto, e decidi deixá-lo devolver ao lugar de origem. Estendi para ele, e na perplexidade com minha calma, ele o pegou e se posicionou para colocar. Olhava para mim enquanto fazia isso, e acabou encaixando invertido.
– O que foi isso? perguntei, apontando para a mão.
Com um assunto para ocupar a mente, ele respondeu de uma vez.
Rigor mortis. Assusta gente com o dobro da sua idade. Ou mais velhos. Metade das aulas de anatomia nós temos que pegar um estudante que desmaia quando testemunha isso. Você sabia que ia acontecer?
– Bom, eu andei lendo sobre o assunto, tem alguns livros de anatomia no meu antigo colégio... E eu li Mary Shelley também, acrescentei – Frankenstein.
Enquanto discorria sobre pontos de estímulo, reações cerebrais, funções dos setores do cérebro, essas coisas que foram me caindo nas mãos erraticamente e eu armazenava ainda frescas, a expressão do rosto de seu José se aproximava do choque. Reagia cada vez mais mecanicamente, até que resolvi deixar ele em paz, e fui embora. Na saída, ele me recomendou não desistir da medicina, tentar um curso iniciante na Cruz Vermelha de primeiros socorros... Ia ver.

Ali, de pé no banheiro, pensava naquela expressão, assim como na incredulidade do diretor do colégio quando eu contei o que estava fazendo pela Feira de Ciências do colégio. Comecei a lembrar que a incredulidade ia passando de rosto a rosto, o colégio resolvera me ceder "material adicional" para o trabalho, consistindo basicamente de xerox grátis para meus panfletos e um cérebro de cerâmica. A professora de ciências passou no meu "stand" por 30 segundos, e anotou na ficha dela e no canto do meu trabalho "10, com louvor".

Com essas lembranças, percebi que tinha encontrado uma arma. Não sabia bem qual, ou onde e como usá-la, mas minha mente me dizia que havia um novo tipo de controle para trabalhar com as situações. No meio das minhas pernas, minha pequena múmia latejava lentamente, dor branda, em repouso. Os antiinflamatórios estavam funcionando, e isso me enchia de sono.

3 comentários:

I'm Nina, Marie, etc... disse...

É. Definitivamente essa camarada é Estranho.

editor disse...

esse cap foi uma inutil barriga na estoria

nao repita a!!!!

Mandaricks disse...

Required, eu to te respondendo de cima pra baixo. Ou seja, dos posts mais recentes pros mais antigos.
Tenho que colocar essas coisas, se chama "apresentar a porra do personagem pro caro leitor". É um recurso muito usado na Noobetanha. Seu noob.

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