domingo, janeiro 24, 2010

Batismo (Ou: Amor dói) – parte final

Acordei, como sempre de bom humor com o mundo, cheio de expectativas para o dia... até lembrar que dia era  esse. Sem café, para começar. Em jejum. Pior ainda, acordei cedo demais, no reflexo de ir para o colégio, eram ainda 7:30 da manhã.
Para me entreter, fiquei lembrando do rosto da Ariana, tão colorido de emoções conflitantes, ainda sem entender o que acontecera, ainda querendo explicações sobre minha situação, ainda usando um vestido de algodão verde-vômito, e já precisando sair. Ela e minha mãe se odiavam sem diálogos ou reservas. Mas eu tinha fé que isso um dia mudaria, já que pretendia ter a ambas por um bom tempo na minha vida.
Me imaginei numa posição de poder administrativo, vestindo terno, usando um cavanhaque cruel, corrigindo o mundo de uma mesa de diretoria. Um diretor como todos os outros, mas secretamente anarquista, e conspirando contra as corporações por dentro. Ariana, nesse sonho, era minha ligação com o submundo, onde raramente nos víamos, mas furiosamente nos amávamos, numa lassidão enérgica dos desesperados. Onde acabávamos num quarto secreto, lençóis negros de cetim, exaustos e discutindo planos de dominação e destruição para transformar o mundo num lugar justo.
O sonho acordado me deu uma tranquilizada, e me fez perder algum tempo: dois minutos, infelizmente. Já havia lido Ilusões, de Richard Bach antes, e lembrei do truque do ensimento Messias: pegue qualquer impresso, abra em qualquer página e leia qualquer parágrafo: um ensinamento para sua situação presente aparecerá. Me aproximei da nossa estante de livros, e enviesado a ela, olhando para o outro lado, apanhei um livro e abri, e só olhei direto para ele quando consegui fincar um indicador numa das folhas.
Era o livro de meditação e do-in, o do diagrama exótico de ontem, mas agora falava de meditação. Vaticinava que era necessário, algumas vezes, a meditação para alcançar uma tranquilidade quando tudo o mais falhava. Seguir posição da pagina xx, e a respiração correlativa. Uma vez atingido aquele estágio de meditação, o sentimento focal o acompanhava por muitos anos, podendo ser acessado nas mais diversas situações.
Certo. Bom recado. Fui à página xx, analisei a posição, fiz o mais parecido possível, já que não nasci com coxas capazes de fazer o raio do lótus, e segui a respiração descrita ao lado. Manter a sílaba sagrada Om pronunciada, baixo, a despeito da passagem de ida ou vinda do ar. Ok. Ainda bem que faço natação, dá pra brincar com o ar. Vamos ver.
Om. Pouco depois de fechar os olhos, estavam abertos. E eram nove horas. Po, esse negócio de energia alternativa devia vir em caixa de cereais, fácil desse jeito.
A roupa estava do meu lado. Ridículo, pensei, me vestir pra ficar pelado. Não estava com sentimento nenhum, não conseguia ficar triste, nervoso, fraco, arrogante, engraçado, nada. Era uma folha de papel naquela manhã, e todos os trejeitos e macaquices normais da minha mãe, dedicada ao esforço de me ajudar, e de ser notada no papel, só me fizeram um sorriso leve. Via meu próprio estado e não entendia, como podia me olhar de fora, e o que estava acontecendo comigo? Nada de Muad'Dib, nada de revolução, quase nenhum sentimento a não ser o buscar dos eventos que estavam no imediato porvir. Dessa vista de fora, olhava para minha mãe, e percebia que até ela se acalmava, mais por estranhamento que qualquer coisa. Olhando de novo para mim mesmo, estava de olhos fechados. Mas que coisa estranha! Via até um rapaz de camisa amarela atrás de nós, dedicando uma discreta atenção aos dois. Não, isso eu estava imaginando, não tinha como eu olhar atrás de mim estando de olhos fechados.
Chegamos. Abri os olhos assim que vi minha mãe começar a se levantar, e na desculpa de dar passagem a ela, fiquei de lado no corredor do ônibus. O rapaz estava lá! E se levantava, parecia atento ao ponto, ia descer com a gente.
Descemos, minha mãe afogueada no papel de pessoa dedicada, eu tão expressivo como um copo d'água. No meio da calçada, me virei para minha mãe, olhando para ela e para o redor dela, e um instante antes que acontecesse alguma coisa, a abracei. Ela respondeu ao abraço na mesma hora, num instinto materno, e meu braço pôde fechar a boca da bolsa sob o braço dela. As unhas quebradas do rapaz, na mão rapinante, me arranharam. Num último olhar de raiva pelo golpe frustrado, ele olhou para trás e nossos olhos se cruzaram. A raiva cristalina e ameaçadora sumiu num apagar de luz, de seus olhos, e ele seguiu andando como se nada tivesse acontecido.
"Ô filho, você está nervoso, né? Eu também, esse tipo de coisa tinha que ser feito quando você era mais novo, para não ter lembranças da dor, e do processo todo... Mas apesar de tudo, vai dar tudo certo, viu? Vai ficar tudo direitinho, você vai ver!"
Voltei a andar ao seu lado, e logo na nossa frente, as letras ABBR estavam pintadas em azul, e no pátio interno das instalações do Jardim Botânico, já via funcionários transportando cadeiras, cilindros, macas, entre os prédios. Todos de uniforme, com aquele ar de quem viu mais do que precisava para aquele dia ainda tão novo. Em muito pouco tempo, eu já estava tirando a roupa, num quarto esterilizado, e a enfermeira me entregava aquele vestido de paciente, e uma lâmina de barbear descartável. "Para limpar a área, pode usar o banheiro do quarto. Quando terminar, vista a camisola e me avise aqui fora." Saiu sem esperar perguntas. Ok.
A meia dúzia de penugens que precisavam de algum cuidado saíram em três passadas da lâmina, e no instante seguinte estava deitando-me numa maca para a sala de cirurgia. Foi alguma nesse momento, a enfermeira me entregando um comprimido para dissolver na boca, a palavra cirurgia, minha mãe se despedindo de mim como se fosse meu enterro, que a mágica passou. Entendi de repente que ia enfrentar uma coisa desconhecida e que ia intencionalmente me cortar, me transformar, me envolver em um processo. Virei um bichinho assustado e choroso. Acho que não terminei nenhuma frase que comecei, e perguntas terminavam em súplicas, quando terminavam em alguma coisa.
Uma enfermeira me colocou um anteparo, e disse sem ninguém perguntar, "para você não ver". Era uma mulher de rosto agradável, o que quer dizer que eu a achava bonita, com cabelo preto e usando batom. Não sabia que enfermeiras usavam batom. Ela me olhou enquanto eu a examinava, e eu aproveitei para ser coerente em algo: "você pode ficar aqui?" Ela disse que era a função dela, e me disse que se quisesse poderia segurar minha mão também. Claro que eu queria, estavam aplicando as anestesias. Tinham limpado tudo com algo como iodo, ou talvez já fosse o povidine naquela época, e eu contei quatro pontadas onde não queria nem a gaze passando. Pararam de mexer em mim por uns dois minutos, e uma outra pessoa perguntou, "sente isso?" e me deu um peteleco na glande. "Claro!", respondi, e todos se entreolharam. A cabeça do dr. Flávio despontou sobre o pequeno anteparo no meu quadril, e a mão dele balançava meu pênis de um lado para o outro enquanto ele perguntava "o que eu estou fazendo?" e eu respondia "balançando meu..." sem conseguir terminar a frase. Uma falta de ar absurda tomava conta de mim. Algo estava errado. Uma ereção estranha e incompleta começava a acontecer. E eu sentia tudo.
O dr. Flávio deu a volta na mesa, interrompendo uma frase dirigida a ele no caminho com um gesto, e me encarou. Na mão ele tinha um bisturi, que me mostrou.
"Olha só," ele explicou, "eu vou fazer a sua cirurgia, e você vai achar que está sentindo alguma coisa. Mas não vai ter dor, porque você está anestesiado. Entendeu?" Aquele homem sério estava com raiva na voz, e eu era um menininho incapaz de contrariar nem um pé de alface. Ele voltou a se posicionar no meio das minhas pernas, atrás do anteparo. Senti uma mão apertando meu pênis, que já estava quase em pé sozinho, e numa ordenha ao avesso, começando pela cabeça, indo até a base, retirou todo o sangue que já se acumulava no meu corpo cavernoso. E senti alguém pegando minha mão.
A enfermeira bonita tinha posto uma máscara, e olhava para mim, sua mão dentro da minha. Senti um puxão no prepúcio, e entendi que minha batalha começava. As informações do meu tato ficavam confusos, à medida que o pânico se instaurava, mas percebi que se demoravam para realmente começar. Recolhi as pernas por reflexo, e imediatamente foram recolocadas no lugar com decisão, mas não com brutalidade. Suava frio, realmente, pela primeira vez na vida. E apertei a mão na minha, para logo depois soltar: não queria machucar a moça.
Ela me encarou, e disse: "pode apertar minha mão, é pra isso que ela está aí" E num rápido relance para o médico, voltou para me dizer "pode xingar também, se quiser". Percebi que não era o único que não gostava mais do dr. Flávio naquela sala. Sua pronúncia era perfeita, como se ela estivesse me ensinando português. Ajeitei a mão dela dentro da minha, pois sabia que se apertasse só os dedos dela seria ruim. Pra ela.
Sem a menor necessidade, no meio daquela mexeção toda entre minhas pernas, ouvi o aviso "lá vai", e imediatamente uma pontada onde não queria sentir nada. Não naquele momento. Apertei os dedos dos pés entre eles, estiquei as pernas o máximo que pude, contraí o abdômen, o peito, ombros, braços, e a mão da enfermeira, e toda aquela tensão foi saindo do meu corpo pelo mesmo caminho, enquanto sentia os cortes em laivos de dor aguda, minha mão encaixada na dela traduzindo dor, frustração, medo, agústia...
Então eu olhei pra ela. Não era a mesma pessoa que estivera ali antes, era uma personificação! Como se uma entidade tivesse silenciosa e discretamente baixado naquela moça atenciosa, gentil e bonita, agora eu via um poder dentro dela! Um aspecto que apenas muito tempo depois eu entenderia, como se cada mulher tivesse uma capacidade de acessar o molde-mestre de todas as mulheres do mundo, e de lá trouxesse um aspecto da Mulher Primordial, uma Deusa que deixava uma centelha em cada mulher do mundo ao nascerem, enquanto ela mesma era todas juntas, somadas. Via ali o aspecto da curandeira, a que atendia os feridos da batalha, e enganava a própria Morte, se não a da carne, ao menos a do espírito. Vi seu rosto comum, humano, como se fosse feito de mármore, e ela olhava para mim para dar, não a tranquilidade, mas a chancela de que tudo estaria certo ali sob supervisão dela, uma supervisão mística para a qual nenhuma força humana poderia opor resistência.
O olhar daquele rosto serenamente me dizia "LUTE". E ali indefeso, quase achei ridículo, até entender que estivera guardando a dor e o rancor dentro de mim. Estivera engolindo ele todo.
Sem mexer meu corpo, relaxei a musculatura. Cravei minha mão na daquele Aspecto da Deusa, sem medo, e olhei para o teto. Saiu uma voz de dentro de mim que eu nunca produzira antes. Seca, lenta, pausada, determinada e cruel.
- Seu filho da puta. Eu quero que você entenda que nada vai dar errado aí embaixo, independente de quanto você esteja nervoso. Eu estou sentindo sua faca em mim, e vou sentir também a agulha dos seus pontos, e vou passar por isso como um homem, entendeu? Eu quero que você se foda por ser um escroto, mas você não vai ser mais esse escroto comigo, porque você não é mais capaz disso. Não é.
E fechei os olhos. Busquei aquele ponto central da meditação, onde eu era coerente comigo, e percebi que não sei de onde eu tinha vindo para chegar ali. Não sabia ser a pessoa que falou aquilo, creio que nunca mais saberia ser, mas quando voltei daquela atitude mental para buscar o ponto de Om, sabia que tinha sido claramente entendido. Como se fosse um comando, os toques e cortes assumiram um outro ritmo, quase que eficiência despida de arrogância. Os pontos deviam ser poucos, porque não consegui contar mais do que algumas pontadas. Vi quando ele se afastou da mesa, para sair, e senti os curativos sendo feitos por outra pessoa. E senti que alguém tentava sair da minha mão.
A enfermeira fazia um gesto discreto para me lembrar que ela ia precisar daquela mão de novo, algum dia. Meus dedos estavam enrijecidos, e não sei quanta dor havia aplicado na mão dela. Mas, a se julgar pela expressão dos olhos dela, não foi pouca. Falei um "obrigado" que saiu fraquinho, e vi um sorriso nos olhos dela. Depois, não a vi mais.
Estava completamente sem noção do mundo quando cheguei no quarto, e fiquei assim por um tempo, desnorteado, meio apagando e voltando sem muita coerência no que falava. Ainda tenho essas lembranças. Acho que minha mãe esteve lá, acho que ela saiu, acho que ela voltou com um sanduíche. Comi sem reparar o gosto, ou mesmo que a bandeja estava apoiada no meu quadril: a anestesia estava funcionando, agora.
Devo ter rido disso, mas não por muito tempo. A enfermeira chegou, com os papéis de alta, e instruiu minha mãe para voltar no dia seguinte ao consultório do dr. Flávio para trocar o primeiro curativo. Tinham se passado três horas de internação, e já queriam desocupar o quarto. Minha mãe ia objetar, mas eu interrompi.
"Devem ter pessoas em condições mais graves que a minha, mãe, precisando do quarto. E eu não quero ficar aqui dentro tendo ataques de chiliques ou me melindrando com coisas que só eu sei se são reais ou não."
Falei isso olhando para a enfermeira o tempo todo, e à palavra "chiliques" ela reagiu com uma silenciosa e discreta aprovação.
Fomos para casa de táxi, já que minhas pernas estavam muito bambas. Tinha passado por uma prova única, e nela encontrara novas forças e fraquezas para aprender do que eu era feito por dentro. E do que o mundo era feito por fora da minha bolha protetora.
Fui batizado.

Nenhum comentário:

Mulan, o curta

Uma vez a gente ficou imaginando que desenho da Disney nos representava. Eu disse que ela com certeza era a Bela, porque adorava ler, ad...