domingo, janeiro 31, 2010

Amor Dói: Revanche (1)

Até ali só tinha um jeito de definir aquela noite: PIOR. DA. VIDA. Eu ainda não conhecia ressaca de vodca, então realmente era difícil de pensar em coisa pior que não ter posição pra dormir. Além do óbvio, aquele monte de suturas mumificadas, o corpo inteiro doía da tensão do dia anterior.
Senti o ruído branco aparecendo, disposto a apagar tudo e jogar pra um canto da cabeça onde seria menos doloroso. Não era hora ainda, e não sei se queria algum dia perder a lembrança daquilo que acontecera. Fui criança, fui homem, fui gente. Saí de lá diferente, e não entendia ainda o quanto, mas sabia que aquela experiência seria um novo Norte na minha vida.
Fiquei a noite inteira me distraindo, usando de recursos de memória para passar cada minuto; de vez em quando, tentava mandar o "om" pra regularizar as coisas, mas as coisas não queriam sossego. Tentei fazer xixi, mas a urina encheu a bandagem por dentro antes de sair, e o sal passava por cada cantinho cortado e costurado e fazia tudo arder.
Mas, com relutância, o dia foi chegando. As pessoas se mexiam na calçada lá embaixo, o sol nascia devagar... e a dor falava comigo, cada hora uma sílaba disconexa de um discurso pro qual eu não tinha resposta, ou com o qual podia me conformar. Sentado, em pé, de lado, de bruços, nenhuma posição dava menos incômodo que a anterior.
Devo ter apagado, já era hora de trocar o curativo.
Fomos ao dr. Flávio, e nem me lembrava nessa hora de qual luta foi travada e quem saiu vencedor. Tentava encontrar uma posição da qual partisse menos dor. Chegada a minha vez, ele mal falou. Pediu que mostrasse, e imediatamente se pôs a tirar os esparadrapos.
Por ver um pedaço de gaze, eu supunha que o esparadrapo estava ali apenas para sustentação do curativo. Triste engano: eu e o esparadrapo estávamos bem mais íntimos do que eu desejaria. E estava preso em espiral.
Sem muito cuidado, o urologista foi puxando aquelas camadas de adesivo sobre uma carne que nunca tinha visto o ar livre, e em seguida sobre seus pontos. Imagino que não havia maneira delicada de se fazer aquilo. Se tivesse, não creio que fosse uma técnica ao meu alcance naquelas circunstâncias. Portanto, se eu pensava que estava doendo antes, agora eu sentia saudades daquela pequena perturbação. Tinha um grito preso na minha garganta com aquela nova sensação em vista.
Vi meu novo pênis, com suas suturas pretas. Parecia uma coroa de espinhos, numa costura em forma de anel ao redor da cabeça. Sangue coagulado devia estar misturado naquela bagunça, e alguns pontos brancos de cola estavam ali perto.
Naquele momento, o dr. Flávio pediu minha atenção. dali por diante, alguém teria de fazer esses curativos em casa pra mim, ou eu mesmo, e era bom que eu aprendesse a lidar com aquilo. Dessa vez gastando bastante gaze, ele me mostrou o que fazer para manter protegida essa cicatriz em processo de recomposição. E me alertou: era de suma importância que eu não tivesse nenhuma, mas nenhuma chance de ereção nesses próximos seis ou sete dias.
Acontece que a tal coroa era realmente um anel de pontos, e eles foram dados logo abaixo da glande com o diâmetro do amiguinho em repouso (sic). Se eu sofresse a dilatação de uma ereção, todo o corpo do pênis cresceria, menos os pontos. O resto ele deixou em silêncio, por conta da minha imaginação figurar decapitações expontâneas no meio da noite.
Ao voltar para a sala de espera, explicou para minha mãe que a única coisa que eu deveria tomar cuidado era com levantar pesos e outros exercícios puxados, mas que eu estava liberado para caminhar e ir aonde quisesse. Por meu lado, não me sentia liberado nem para mexer as pernas, mas ele devia saber do que estava falando. Andando que nem um velhinho, enquanto a dor constante tomava patamares aceitáveis novamente, voltamos para casa.
Me lancei ao sofá da sala, e naquela posição mesmo, chapei. Um sono sem muita explicação e com muito torcicolo me esperando foi minha recompensa pela bravura do dia. Acordei com sussurros à porta, em tom de segredo, e assim que despertei ouvi a porta batendo. Minha mãe tinha dispensado Ariana, que vinha me visitar, porque o zelo de cuidar do filhinho pedia que "aquela menina" não entrasse.
Ainda no sono, passou rapidamente pela minha mente se minha mãe entrara em detalhes desnecessários sobre minha atual condição. Pergunta besta. Claro que ela contou em detalhes o que eu estava passando, e eu sei que se olhasse pela janela agora veria Ariana ainda rindo. Ah, dona Patranha... essa foi de lascar. Enquanto ela me contava, fiz uma cara de zangado pra ela, mas secretamente estava satisfeito de não ter que encarar aquele cheiro e sua dona assim tão cedo e nem tão de perto.

domingo, janeiro 24, 2010

Batismo (Ou: Amor dói) – parte final

Acordei, como sempre de bom humor com o mundo, cheio de expectativas para o dia... até lembrar que dia era  esse. Sem café, para começar. Em jejum. Pior ainda, acordei cedo demais, no reflexo de ir para o colégio, eram ainda 7:30 da manhã.
Para me entreter, fiquei lembrando do rosto da Ariana, tão colorido de emoções conflitantes, ainda sem entender o que acontecera, ainda querendo explicações sobre minha situação, ainda usando um vestido de algodão verde-vômito, e já precisando sair. Ela e minha mãe se odiavam sem diálogos ou reservas. Mas eu tinha fé que isso um dia mudaria, já que pretendia ter a ambas por um bom tempo na minha vida.
Me imaginei numa posição de poder administrativo, vestindo terno, usando um cavanhaque cruel, corrigindo o mundo de uma mesa de diretoria. Um diretor como todos os outros, mas secretamente anarquista, e conspirando contra as corporações por dentro. Ariana, nesse sonho, era minha ligação com o submundo, onde raramente nos víamos, mas furiosamente nos amávamos, numa lassidão enérgica dos desesperados. Onde acabávamos num quarto secreto, lençóis negros de cetim, exaustos e discutindo planos de dominação e destruição para transformar o mundo num lugar justo.
O sonho acordado me deu uma tranquilizada, e me fez perder algum tempo: dois minutos, infelizmente. Já havia lido Ilusões, de Richard Bach antes, e lembrei do truque do ensimento Messias: pegue qualquer impresso, abra em qualquer página e leia qualquer parágrafo: um ensinamento para sua situação presente aparecerá. Me aproximei da nossa estante de livros, e enviesado a ela, olhando para o outro lado, apanhei um livro e abri, e só olhei direto para ele quando consegui fincar um indicador numa das folhas.
Era o livro de meditação e do-in, o do diagrama exótico de ontem, mas agora falava de meditação. Vaticinava que era necessário, algumas vezes, a meditação para alcançar uma tranquilidade quando tudo o mais falhava. Seguir posição da pagina xx, e a respiração correlativa. Uma vez atingido aquele estágio de meditação, o sentimento focal o acompanhava por muitos anos, podendo ser acessado nas mais diversas situações.
Certo. Bom recado. Fui à página xx, analisei a posição, fiz o mais parecido possível, já que não nasci com coxas capazes de fazer o raio do lótus, e segui a respiração descrita ao lado. Manter a sílaba sagrada Om pronunciada, baixo, a despeito da passagem de ida ou vinda do ar. Ok. Ainda bem que faço natação, dá pra brincar com o ar. Vamos ver.
Om. Pouco depois de fechar os olhos, estavam abertos. E eram nove horas. Po, esse negócio de energia alternativa devia vir em caixa de cereais, fácil desse jeito.
A roupa estava do meu lado. Ridículo, pensei, me vestir pra ficar pelado. Não estava com sentimento nenhum, não conseguia ficar triste, nervoso, fraco, arrogante, engraçado, nada. Era uma folha de papel naquela manhã, e todos os trejeitos e macaquices normais da minha mãe, dedicada ao esforço de me ajudar, e de ser notada no papel, só me fizeram um sorriso leve. Via meu próprio estado e não entendia, como podia me olhar de fora, e o que estava acontecendo comigo? Nada de Muad'Dib, nada de revolução, quase nenhum sentimento a não ser o buscar dos eventos que estavam no imediato porvir. Dessa vista de fora, olhava para minha mãe, e percebia que até ela se acalmava, mais por estranhamento que qualquer coisa. Olhando de novo para mim mesmo, estava de olhos fechados. Mas que coisa estranha! Via até um rapaz de camisa amarela atrás de nós, dedicando uma discreta atenção aos dois. Não, isso eu estava imaginando, não tinha como eu olhar atrás de mim estando de olhos fechados.
Chegamos. Abri os olhos assim que vi minha mãe começar a se levantar, e na desculpa de dar passagem a ela, fiquei de lado no corredor do ônibus. O rapaz estava lá! E se levantava, parecia atento ao ponto, ia descer com a gente.
Descemos, minha mãe afogueada no papel de pessoa dedicada, eu tão expressivo como um copo d'água. No meio da calçada, me virei para minha mãe, olhando para ela e para o redor dela, e um instante antes que acontecesse alguma coisa, a abracei. Ela respondeu ao abraço na mesma hora, num instinto materno, e meu braço pôde fechar a boca da bolsa sob o braço dela. As unhas quebradas do rapaz, na mão rapinante, me arranharam. Num último olhar de raiva pelo golpe frustrado, ele olhou para trás e nossos olhos se cruzaram. A raiva cristalina e ameaçadora sumiu num apagar de luz, de seus olhos, e ele seguiu andando como se nada tivesse acontecido.
"Ô filho, você está nervoso, né? Eu também, esse tipo de coisa tinha que ser feito quando você era mais novo, para não ter lembranças da dor, e do processo todo... Mas apesar de tudo, vai dar tudo certo, viu? Vai ficar tudo direitinho, você vai ver!"
Voltei a andar ao seu lado, e logo na nossa frente, as letras ABBR estavam pintadas em azul, e no pátio interno das instalações do Jardim Botânico, já via funcionários transportando cadeiras, cilindros, macas, entre os prédios. Todos de uniforme, com aquele ar de quem viu mais do que precisava para aquele dia ainda tão novo. Em muito pouco tempo, eu já estava tirando a roupa, num quarto esterilizado, e a enfermeira me entregava aquele vestido de paciente, e uma lâmina de barbear descartável. "Para limpar a área, pode usar o banheiro do quarto. Quando terminar, vista a camisola e me avise aqui fora." Saiu sem esperar perguntas. Ok.
A meia dúzia de penugens que precisavam de algum cuidado saíram em três passadas da lâmina, e no instante seguinte estava deitando-me numa maca para a sala de cirurgia. Foi alguma nesse momento, a enfermeira me entregando um comprimido para dissolver na boca, a palavra cirurgia, minha mãe se despedindo de mim como se fosse meu enterro, que a mágica passou. Entendi de repente que ia enfrentar uma coisa desconhecida e que ia intencionalmente me cortar, me transformar, me envolver em um processo. Virei um bichinho assustado e choroso. Acho que não terminei nenhuma frase que comecei, e perguntas terminavam em súplicas, quando terminavam em alguma coisa.
Uma enfermeira me colocou um anteparo, e disse sem ninguém perguntar, "para você não ver". Era uma mulher de rosto agradável, o que quer dizer que eu a achava bonita, com cabelo preto e usando batom. Não sabia que enfermeiras usavam batom. Ela me olhou enquanto eu a examinava, e eu aproveitei para ser coerente em algo: "você pode ficar aqui?" Ela disse que era a função dela, e me disse que se quisesse poderia segurar minha mão também. Claro que eu queria, estavam aplicando as anestesias. Tinham limpado tudo com algo como iodo, ou talvez já fosse o povidine naquela época, e eu contei quatro pontadas onde não queria nem a gaze passando. Pararam de mexer em mim por uns dois minutos, e uma outra pessoa perguntou, "sente isso?" e me deu um peteleco na glande. "Claro!", respondi, e todos se entreolharam. A cabeça do dr. Flávio despontou sobre o pequeno anteparo no meu quadril, e a mão dele balançava meu pênis de um lado para o outro enquanto ele perguntava "o que eu estou fazendo?" e eu respondia "balançando meu..." sem conseguir terminar a frase. Uma falta de ar absurda tomava conta de mim. Algo estava errado. Uma ereção estranha e incompleta começava a acontecer. E eu sentia tudo.
O dr. Flávio deu a volta na mesa, interrompendo uma frase dirigida a ele no caminho com um gesto, e me encarou. Na mão ele tinha um bisturi, que me mostrou.
"Olha só," ele explicou, "eu vou fazer a sua cirurgia, e você vai achar que está sentindo alguma coisa. Mas não vai ter dor, porque você está anestesiado. Entendeu?" Aquele homem sério estava com raiva na voz, e eu era um menininho incapaz de contrariar nem um pé de alface. Ele voltou a se posicionar no meio das minhas pernas, atrás do anteparo. Senti uma mão apertando meu pênis, que já estava quase em pé sozinho, e numa ordenha ao avesso, começando pela cabeça, indo até a base, retirou todo o sangue que já se acumulava no meu corpo cavernoso. E senti alguém pegando minha mão.
A enfermeira bonita tinha posto uma máscara, e olhava para mim, sua mão dentro da minha. Senti um puxão no prepúcio, e entendi que minha batalha começava. As informações do meu tato ficavam confusos, à medida que o pânico se instaurava, mas percebi que se demoravam para realmente começar. Recolhi as pernas por reflexo, e imediatamente foram recolocadas no lugar com decisão, mas não com brutalidade. Suava frio, realmente, pela primeira vez na vida. E apertei a mão na minha, para logo depois soltar: não queria machucar a moça.
Ela me encarou, e disse: "pode apertar minha mão, é pra isso que ela está aí" E num rápido relance para o médico, voltou para me dizer "pode xingar também, se quiser". Percebi que não era o único que não gostava mais do dr. Flávio naquela sala. Sua pronúncia era perfeita, como se ela estivesse me ensinando português. Ajeitei a mão dela dentro da minha, pois sabia que se apertasse só os dedos dela seria ruim. Pra ela.
Sem a menor necessidade, no meio daquela mexeção toda entre minhas pernas, ouvi o aviso "lá vai", e imediatamente uma pontada onde não queria sentir nada. Não naquele momento. Apertei os dedos dos pés entre eles, estiquei as pernas o máximo que pude, contraí o abdômen, o peito, ombros, braços, e a mão da enfermeira, e toda aquela tensão foi saindo do meu corpo pelo mesmo caminho, enquanto sentia os cortes em laivos de dor aguda, minha mão encaixada na dela traduzindo dor, frustração, medo, agústia...
Então eu olhei pra ela. Não era a mesma pessoa que estivera ali antes, era uma personificação! Como se uma entidade tivesse silenciosa e discretamente baixado naquela moça atenciosa, gentil e bonita, agora eu via um poder dentro dela! Um aspecto que apenas muito tempo depois eu entenderia, como se cada mulher tivesse uma capacidade de acessar o molde-mestre de todas as mulheres do mundo, e de lá trouxesse um aspecto da Mulher Primordial, uma Deusa que deixava uma centelha em cada mulher do mundo ao nascerem, enquanto ela mesma era todas juntas, somadas. Via ali o aspecto da curandeira, a que atendia os feridos da batalha, e enganava a própria Morte, se não a da carne, ao menos a do espírito. Vi seu rosto comum, humano, como se fosse feito de mármore, e ela olhava para mim para dar, não a tranquilidade, mas a chancela de que tudo estaria certo ali sob supervisão dela, uma supervisão mística para a qual nenhuma força humana poderia opor resistência.
O olhar daquele rosto serenamente me dizia "LUTE". E ali indefeso, quase achei ridículo, até entender que estivera guardando a dor e o rancor dentro de mim. Estivera engolindo ele todo.
Sem mexer meu corpo, relaxei a musculatura. Cravei minha mão na daquele Aspecto da Deusa, sem medo, e olhei para o teto. Saiu uma voz de dentro de mim que eu nunca produzira antes. Seca, lenta, pausada, determinada e cruel.
- Seu filho da puta. Eu quero que você entenda que nada vai dar errado aí embaixo, independente de quanto você esteja nervoso. Eu estou sentindo sua faca em mim, e vou sentir também a agulha dos seus pontos, e vou passar por isso como um homem, entendeu? Eu quero que você se foda por ser um escroto, mas você não vai ser mais esse escroto comigo, porque você não é mais capaz disso. Não é.
E fechei os olhos. Busquei aquele ponto central da meditação, onde eu era coerente comigo, e percebi que não sei de onde eu tinha vindo para chegar ali. Não sabia ser a pessoa que falou aquilo, creio que nunca mais saberia ser, mas quando voltei daquela atitude mental para buscar o ponto de Om, sabia que tinha sido claramente entendido. Como se fosse um comando, os toques e cortes assumiram um outro ritmo, quase que eficiência despida de arrogância. Os pontos deviam ser poucos, porque não consegui contar mais do que algumas pontadas. Vi quando ele se afastou da mesa, para sair, e senti os curativos sendo feitos por outra pessoa. E senti que alguém tentava sair da minha mão.
A enfermeira fazia um gesto discreto para me lembrar que ela ia precisar daquela mão de novo, algum dia. Meus dedos estavam enrijecidos, e não sei quanta dor havia aplicado na mão dela. Mas, a se julgar pela expressão dos olhos dela, não foi pouca. Falei um "obrigado" que saiu fraquinho, e vi um sorriso nos olhos dela. Depois, não a vi mais.
Estava completamente sem noção do mundo quando cheguei no quarto, e fiquei assim por um tempo, desnorteado, meio apagando e voltando sem muita coerência no que falava. Ainda tenho essas lembranças. Acho que minha mãe esteve lá, acho que ela saiu, acho que ela voltou com um sanduíche. Comi sem reparar o gosto, ou mesmo que a bandeja estava apoiada no meu quadril: a anestesia estava funcionando, agora.
Devo ter rido disso, mas não por muito tempo. A enfermeira chegou, com os papéis de alta, e instruiu minha mãe para voltar no dia seguinte ao consultório do dr. Flávio para trocar o primeiro curativo. Tinham se passado três horas de internação, e já queriam desocupar o quarto. Minha mãe ia objetar, mas eu interrompi.
"Devem ter pessoas em condições mais graves que a minha, mãe, precisando do quarto. E eu não quero ficar aqui dentro tendo ataques de chiliques ou me melindrando com coisas que só eu sei se são reais ou não."
Falei isso olhando para a enfermeira o tempo todo, e à palavra "chiliques" ela reagiu com uma silenciosa e discreta aprovação.
Fomos para casa de táxi, já que minhas pernas estavam muito bambas. Tinha passado por uma prova única, e nela encontrara novas forças e fraquezas para aprender do que eu era feito por dentro. E do que o mundo era feito por fora da minha bolha protetora.
Fui batizado.

sábado, janeiro 23, 2010

Batismo (Ou: Amor dói) – parte 5

O sentimento de novo mestre da humanidade foi sumindo nos dias que vieram, e foi dando espaço a um sentimento de execução iminente. Ia doer? E se errassem alguma coisa? A inquietação não melhorava quando eu passava pela sala, onde dona Patranha colocara um aviso ocupando uma folha inteira de A4:
23 DE AGOSTO
CIRURGIA OSVALDO
10:00 EM JEJUM
Onde eu comecei a ler
23 DE AGOSTO
GRANDE EXECUÇÃO DO PINTO DO OSVALDO
FARTA DISTRIBUIÇÃO DE COMES E BEBES
TRAJE ESPORTE FINO – BINGO
APÓS O EVENTO DISTRIBUIÇÃO DA FILMAGEM EM VHS!!!
E se parece exagero, basta pensar que minha mãe comentava o assunto com ares de gravidade e um estranho respeito, mas comentava até com o quitandeiro:
– Seu Zé, me vê uma dúzia de bananas?
– Uma dúzia? A senhora leva só meia!
– É, mas MEU FILHO VAI FAZER UMA CIRURGIA E NÃO QUERO QUE ELE FIQUE DESNUTRIDO, SABE?
– Tá certo, dona Patrícia. Mais alguma coisa?
– Sim, me vê meio quilo de inhame, que É PRA PREPARAR MEU FILHO PRA CIRURGIA, INHAME É BOM PRA QUEM ESTÁ SE RECUPERANDO DE UMA CIRURGIA, NÃO É?
Quando todo mundo começou a olhar pra mim como se eu tivesse um gêmeo agarrado, ou um terceiro braço, eu entendi que os dias de ajudar minha mãe na rua estavam contados. Mas eu realmente corri pra casa quando ouvi a pergunta que não queria nunca, jamais ter ouvido:
– Cirurgia? Mas ele parece ótimo! Vai operar o quê?
Pode parecer uma besteira, mas imaginar minha circuncisão como tema de debate de todo o comércio local, mais os porteiros, as vizinhas, e seja lá quem tenha passado no caminho da minha mãe naqueles dias, me fez ter muita vontade de ficar em casa. Ou de mudar de planeta, mas ficar em casa parecia mais coerente, já que o Cabo Canaveral ficava muito longe.
Senti muita saudade da escola pública que frequentava no subúrbio, num período que não pude morar com meus pais. Foi lá que aprendi a gostar de ler, na biblioteca pública que eles mantinham, e foi lá que tive acesso a moderna enciclopédia de educação sexual (ou lá o nome que tivesse o relatório Kinsey), que li até o tomo três de cinco, quando me flagaram e isolaram a estante inteira. Ainda assim, era muito melhor passar duas horas lá a título de estudo, lendo Júlio Verne, Monteiro Lobato, Maravilhas da Modernidade, alguns gibis, o que estivesse dando sopa. Muito, muito melhor que voltar para a casa da minha avó.
Nessa depressão comecei a olhar para os livros da minha mãe, que remontavam de uma época anterior à minah vinda ao mundo, uma época onde ela não era a mãe vigilante e isolada de contatos que depois se tornara. Relatório Hite, Erich Von Däniken, Richard Bach, Edgar Allan Poe, mais alguns sobre massagem, do-in, chakras. Hmm massagem. Comecei a ler.
Uma boa parte dos dados entrava na minha cabeça sem muito significado, pois os livros que estavam ali defendiam que você pode apertar o pé para consertar um fígado; apertar a orelha de um certo jeito para regular alguma coisa como "estabilizar o coração"; ou apertar um canto da mão para acertar "a vibração harmônica do útero"
opaaa. Alguém falou em útero? Modo alta resolução ativado, gravando.
Nunca antes eu tinha tentado ler mais de um livro de cada vez, mas tinham um cinco ou seis livros em cima da mesa quando eu me dei conta de que, com títulos diferentes, mestres diferentes, autores diferentes, todos afirmavam que era perfeitamente possível, em resumo, dar tesão em uma mulher apertando-lhe a mão de uma certa maneira. O truque de verdade era o movimento circular do polegar sobre a carninha entre o polegar e o indicador dela. Para dar firmeza, o seu dedo médio ia por baixo, no meio da mão, forçando para cima, enquanto o indicador pegava a mesma carninha por baixo, na forma de um beliscão, mas não machucando. Massageando.
Oportunamente, o telefone tocou. Entenda, era uma época em que a telefonia fixa era uma arte, não uma ciência: planejávamos as ligações, gastávamos de cinco a vinte minutos tentando começar a ligação, e às vezes uns ecos de cano entravam na ligação, ou linha cruzada, ou simplesmente engano. Muito engano. Pegar, ligar e falar era coisa de novela da Globo. Quando eu disse que era oportuno, queria dizer que era Ariana.
Eu não tinha aparecido nos últimos dias, e isso era estranho porque já estávamos há coisa de uns oito meses nos vendo praticamente todos os dias, menos os finais de semana que eu passava com meu pai. Ela decidiu vir quando eu disse que queria ficar em casa e isso era novidade: era sempre eu a ir lá. Por alguma razão, ela e minha mãe não se davam muito bem, e só fui entender alguns anos depois.
Ela veio. E veio com um vestido de algodão tubete justo, verde vômito, da Alternativa (uma marca de roupas vendida na Mesbla). Sem bolsos, o que a fazia levar a carteira estufada de sei lá o quê na mão. Lembro bem do vestido, porque foi quando realmente registrei, num acesso de memória sobreposto ao momento presente, que Ariana simplesmente não usava sutiã. Nunca. E às vezes também não usava calcinhas, como podia notar. Naquele dia, não.
Eu tinha deixado os livros empilhados em cima da mesa, mas fechados. Menos um, que mostrava um complexo diagrama indiano dos fusíveis da alma ligada ao corpo, ou qualquer coisa assim que não tinha entendido ainda, mas era impressionante.
Ela foi perguntando o que estava acontecendo comigo, se eu estava inteiro e não ia na casa dela. Sentei-me com ar grave na frente do livro, e isso fez ela se reposicionar na minha frente. Dessa vez com a janela ensolarada nas costas.
Como eu podia imaginar a se julgar do algodão (dona Patranha já trabalhara com roupas, tecidos e figurinos antes de ir para a editora que estava agora), a luz passava diretamente sobre ele, deixando uma silhueta nua na minha frente. Sentado, cabeça baixa no livro, ar grave, apenas olhei para ela, sem ser notado. Olhei bem no meio das coxas grossas e torneadas.
E lá estava. Grandes lábios, encapsulando vagina e sua pequena pérola, o clitoris, e dali o canal vaginal, e logo acima (valeu Kinsey!) o útero. Pacote completo, mais uma Ariana em volta! Acho que poderia levantar o tampo da mesa, se a mesa colaborasse e descesse uns vinte centímetros até o meu  impávido canal único de reação.
Ela acabou com o show, sentando-se do outro lado da mesa para me encarar. "Porra fala alguma coisa", ela pediu delicadamente.
Eu dei uma explicação muito ruim em qualquer escala sobre ter que operar em breve, e estar estudando umas técnicas de relaxamento. Que minha vida estava mesmo em grandes mudanças, ano que vem teria que mudar de colégio, se desse tudo certo até lá. "Cara ouvi dizer que o Liceu é bom, mas porra Valdo o que que você vai operar, cacete?" e eu quase soltei um "EXATO!", mas me segurei, fiz uma cara de ascetismo à beira do sacrifício e mandei, "Não importa. Quero saber se aprendi direito".

"Segundo o que eu li, o corpo tem muitos pontos de contato com áreas internas e estados de humor". Disse, enquanto pegava sua mão. "Este aqui serve para relaxar, então me diz o que você sente, tá?"
Ariana estava meio desconcertada ainda, sem saber se adotava a Atitude Caminhoneiro para Contatos Físicos com Osvaldo (TM), ou o quê; deixou que pegasse sua mão.
Por uma tacada de sorte, acertei como nunca na vida acertaria essa manobra tão depressa: duas pequenas e suaves voltas do polegar, e o corpo dela já reagiu. A sequência foi bastante rápida? Pelo que me lembro, sim: os pêlos dos braços se eriçaram; o rosto, tão branco, ficou rosado; os mamilos se intumesceram (nem sabia que eles realmente faziam isso); as pupilas se abriram, assim como a boca, levemente; a mão livre da Ariana me acertou um catiripapo no pé do ouvido.
Ela puxou a mão, sentindo-se violada, e fazia menção de ir embora quando viu o cartaz da minha mãe na estante. Do lado, os documentos do laboratório com exames e autorizações. Virou-se para mim, sobressaltada, e esquecida do ultraje, perguntou "é sério mesmo? Você vai operar amanhã?" Eu confirmei, a cara doendo e o orgulho também (afinal agora ela batera num doente). "Mas operar o quê, caralho?" E eu, apertando o riso mas fazendo cara de sóbrio sofrimento, disse "fimose", simplesmente.
Nesse momento, minha mãe irrompeu no apartamento. Vendo Ariana, fez um ar de choque, daqueles que se faz quando os índios começam a invadir a sua casa no Oeste pela manhã. Ariana automaticamente se despediu, prometendo falar depois comigo.
Com a saída dela, dona Patranha veio à carga, para advertir sobre os males de se abrir a porta de nossa fortaleza aos traiçoeiros comanches. Ou algo assim, já não ouvia muito.
*** JÁ SABE QUE CONTINUA, NÉ? ***
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sexta-feira, janeiro 22, 2010

Batizado (Ou: amor dói) parte 4

Conquistar o mundo: quantos significados podemos dar para isso? O seu mundo certamente não tem a mesma fauna, cor, forma, tamanho, significado que o meu.
Eu via na escola, meu mundo: meninas que começavam a florescer para a maturidade. Aprendendo a jogar os cabelos, dar olhares, pedir favores e pagá-los com um sorriso. Via nas ruas, meu mundo: mulheres feitas, resolvidas, decididas ou com problemas tão profundos que minha rasa ingenuidade sequer os imaginava. Via na ACM, meu mundo: mais meninas, aqui aprendendo sobre a sua independência em caráter definitivo.
Via nos livros, meu mundo: Marco Polo conquistando a China, Alice conquistando o País das Maravilhas. Via Dune, meu mundo: o ingênuo Paul, se tornando Muad'Dib. Via Tron, outro mundo: a informática assumindo a regência. Via o idioma inglês, e todos os mistérios em canções, peças, citações.
Meu mundo é que não me via. Essa, a série Shell Responde não respondeu: como fazer para ser alguém relevante ao seu próprio contexto? Podia ter ligado para o Bozo, mas ele só queria que eu gritasse "POW!"

Falando nisso, a terça-feira chegou e meu pai também. Sentou-se comigo no banco de trás do carro, não disse nada boa parte da viagem, e quando disse, alinhavou qualquer resíduo que tivesse entre nós.
– Esse Dr. Flávio... (me encarando diretamente dentro dos olhos) ... eu verifiquei ele. Fique tranqüilo.
Por um breve momento eu imaginei uma máfia lusitana, pondo aquele outro infeliz dentro de um balde de cimento seca-rápido, as mãos amarradas, enquanto meu pai fumava um charuto e falava ao telefone com algum assecla do submundo sobre as referências do Dr. Flávio.
"Cont'nue, ó pá... Então, este é um doutoire muito gira, hã? Foi iéle que cons'rtou o João, das Docas? Ah..."
Concordei uma vez com a cabeça, gesto muito chique, que vi os japoneses de seriado fazerem várias vezes. E olhei para a paisagem, porque o breve momento de imaginação ia se alongando e eu ia acabar gargalhando na cara do meu pai. De quem, afinal, não tinha muitas reclamações: esteve lá, ainda que às vezes, e pronto.
O Dr. Flávio, afinal, era um senhor sério, porte militar, casa dos 40 e boa forma. Levava sua atividade tão a sério que eu juraria que não ficava vendo pinto dos outros nunca. Comecei a achar que estava lá pra operar as amídalas, sei lá.
O homem cumprimentou a mim, depois ao meu pai (o que me deu uma noção de importância nunca antes vista), ouviu atentamente as poucas informações que um caso deste suscita, e se levantou. Cenhos franzidos, agradeceu ao meu pai, e pediu-lhe que esperasse lá fora, pois o paciente precisava de privacidade. Enquanto minha nova noção sobre mim mesmo me deixava zonzo, meu pai foi saindo, meio reticente e olhando pra mim. Entendi o recado, e sem uma palavra sabíamos que ele estava prestando atenção em qualquer reação que eu tivesse, meio decibel que fosse fora do normal. Eu me sentia realmente alguém. Nem tinha notado que me levantara da cadeira, também.
Assim que ficamos em particular, o doutor sentou-se à cadeira do meu pai e me olhou. Quase na mesma altura. Sem encostar a mão em mim, ele me comunicou muito sério que precisava me examinar, e ainda ia ter que me pedir um favor chato: eu teria que ter uma ereção, pra ele entender a extensão do problema.
Tenho certeza que ele fez isso para ser educado. Naquela época, era mais difícil lembrar como se piscam os dois olhos do que isso. Bastava lembrar daquele, daquele cheiro, e mais um mundo de detalhes vívidos em minha mente e lá estávamos, prontos para ação: o Terror dos Sete Mares e sua Espa- ops, e seu punhal.
Fiz simplesmente abrir o zíper e baixar a cueca. Ele forçou a vista, e muito constrangido, sugeriu que talvez precisasse de mais luz, porque "as roupas estavam fazendo sombra". Muito educado. Baixei tudo e levantei a camiseta. Ele encarou meu membro (que no momento estava fazendo uma ereção de figuração, a contragosto, James Dean parado na esquina) por uns vinte segundos, e eu me dei conta de como estava satisfeito que aquilo parecesse apenas chato. Antes chato que a outra opção.
De repente, ele puxou o prepúcio pra fora, esticando-o, olhou lá dentro com uma lanterninha que tirara do bolso do jaleco e tentou fazer a glande aparecer. Entendeu que não ia dar certo quando me encolhi para trás: só a parte da uretra aparecia, e a pele estava já se esticando muito. Largou na mesma hora, e minha impressão do sujeito era crescente: um médico que era médico. Sabia, definitivamente, o que estava fazendo.
Pediu para eu me recompor, o que eu já estava fazendo mesmo, e explicou que seria necessária uma curta intervenção. O prepúcio teria que perder um pedaço, e isso não tinha nada de mais, a não ser por um detalhe que ele não deixaria de cuidar: o cabresto. Que, ante minha evidente ignorância para com o termo, ele explicou ser um conjunto de carne tensionada, por baixo da glande, que garantia não apenas a ereção e a sustentação da glande, mas minha sensação de prazer.
Voltou a afirmar que cuidaria com especial atenção do cabresto, que aí me lembrei ser aquela peça para conduzir cavalos, assim como cuidaria também de não deixar cicatrizes dos pontos, feitos com linha que se dissolve no corpo. Eu talvez ganhasse alguns centímetros, com isso. E concluiu, com uma camaradagem masculina que eu via pela primeira vez na vida, um discreto sorriso de negócios no canto da boca, que não podíamos desapontar as mulheres, tínhamos que apresentar um belo espetáculo.
Disse assim mesmo, como se houvesse tido um cabedal de mulheres no meu passado, algumas no presente e muitas mais no porvir.
Numa atitude bem discreta, perguntou se poderia chamar meu pai da antesala para acertar os detalhes. Concordei, e meu pai estava de pé atrás da porta quando foi aberta. Varou o corpo do médico com o olhar, e verificou sem preâmbulos se eu estava bem, inteiro, desamarrado, vestido. Eu estava enorme em meu pequeno mundo. Me sentia nas rédeas, melhor, no cabresto da minha vida. Paul Muad'Dib indo montar no imenso verme, invencível.


Era para algum dia, em algum lugar, alguma coisa. Mas eu podia lidar com aquilo.

No caminho, o taxímetro Capelinha rodando, meu pai repassava comigo o que acontecera dentro do consultório. Ficou satisfeito com as explicações, embora eu não tenha me detalhado tanto na parte do tamanho, espetáculo e tal. Ele entendeu que tudo ia bem, e ia mesmo, e me informou que precisaria viajar no dia da cirurgia, mas minha mãe iria comigo para o hospital. Numa boa, pensei, sem me tocar naquele exato momento daquela timidez entre filho homem e mãe, e o que eu ia cortar no hospital. Numa boa.

Chegando em casa, fim do dia, recado da mãe da Ariana do lado do telefone. A filha sumira, favor dar notícias. Liguei, ainda sem saber se contaria sobre a modificação revolucionária que me traria um superpênis mágico. Dona Ana atendeu, cansada, e disse que já estava tudo bem, ela chegara e tomava banho. Me despedi, sem pedir que ela ligasse de novo. Ainda não tinha decidido como ia contar, ou se contaria. Talvez fosse melhor simplesmente mostrar que não era mais Clark Kent, e sim o Super-Homem.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Batizado (Ou: amor dói) parte 3

Entramos no consultório, eu e seu Ulysses, e ele finalmente explica o que estávamos fazendo lá. Eu tinha o problema, era fimose, e o que que o doutor achava. Explica diretamente para o médico, que eu sou só um eletrodoméstico com defeito.
O médico, gorduchinho de cabelos grisalhos e desgrenhados, vira-se para mim com ar de divertimento, e comenta, "eu não posso achar sem ver, certo?" e a seguir se afasta da mesa, e estende as mãos para mim. "Vem aqui um instantinho, pro titio ver".
Fui, né? Meu pai não era de fazer brincadeira com essas coisas, se eu estava num médico era pra ser medicado. Por assim dizer, claro. Cheguei perto, ele se virou na cadeira para me encarar, e com um sorriso de canto de boca, me olhando de baixo, pediu: "deixa eu ver o piupiuzinho?"
Gostar de exame médico, acho que ninguém gosta. Mas tem que fazer, e até uma criança difícil como eu entendia claramente que é assim que é a vida. Estava acostumado a médicos, por causa do problema de pele que ninguem resolvia. Via os bobos, os chatos, os profissionais. Mas "piupiuzinho"? Aquilo ali, na minha frente, era novo. Novo e horrível. Mas mesmo assim eu abri a bermuda, e pus pra fora o que havia para se por. Que no momento, era o mínimo possível. Eu já tinha visto antes o meu pênis em repouso. É, ele que já é pequeno fica minúsculo. Mas naquela hora, ele parecia retraído. Intencionalmente retraído, quero dizer.
O médico estendeu as duas mãos, como se fosse colher um botão de rosa, o que parecia ser quase o caso. E, para minha vergonha, ao toque daqueles dedos, algo que eu ainda não conhecia aconteceu: uma ereção contida.
Numa ereção regular, o corpo cavernoso relaxa, para ser preenchido com sangue e garantir o pênis naquele estado que muita gente já conhece. Grandioso, valente, decidido, apto. Naquela, e ainda em alguns outros momentos da minha vida, o corpo cavernoso se manteve tenso, ainda que o sangue começasse a aparecer na área. A diferença é a mesma que qualquer um pode ver entre um pepino ao natural e um pepino em conserva: tom pálido, tamanho reduzido, densidade estranha. O primeiro, qualquer um corta em rodelinha na cozinha; o outro, só o McDonald's.
Tergisversar sobre o momento é fácil. Eu, ali na hora, tinha no cérebro um ruído branco. Uma pequena parte ainda era a consciência que registrava tudo, havia ainda na borda da consciência uma lembrança semelhante a esta, mas talvez ainda pior, e o resto era a mente se protegendo, negando os sentidos, negando o raciocínio, negando tudo. Enquanto o tal médico tentava expor a glande retraindo o prepúcio. Em tentativas ritmadas. Para quem ainda não entendeu, antes de desenhar, eu falo claramente: ele estava, ali na frente do meu pai, à guisa de exame, me masturbando. Aquele filho da puta.
Depois de algumas estocadas, quando eu entendi o que ele estava fazendo, simplesmente fechei o zíper. Sinceramente, eu nem notaria se meu zíper tivesse tirado minha fimose ali mesmo. Acho que até preferia assim. Ou se arrancaria um dedo dele. Melhor ainda.
O doutor ainda conseguiu se surpreender com minha atitude, com um pequeno "ah!" de susto. Uma memória ruim, bem ruim, mas parecidíssima com essa, brincava no limiar da consciência. Eu a sentia ali, mas não conseguia lembrá-la de verdade. Era ruim, lá dentro da cabeça e cá, dentro do consultório. Parei perto da minha cadeira, e interrompi meu pai no meio de uma frase qualquer para informar que estava esperando ele lá fora.
Ele ficou tão desconcertado, ou já estava antes, que apenas aquiesceu, meneando a cabeça. Normalmente a cerimônia entre nós mandaria que ele me mandasse não interromper os adultos, mas algo que ele viu no meu olhar decidiu por ele.
"Lá fora", de acordo com o que descobri dos meus impulsos, era na calçada. Na banca, onde os jornais pendurados ofereciam algo para se ler. Sir Laurence Olivier falecera. Câncer de estômago. Grande perda para o mundo. O resto da minha cabeça era ruído. Grande perda.
Tomei um sacolejo no braço. Seu Ulysses, com olhos arregalados, me encarava, agarrando meu antebraço esquerdo. Ele talvez tenha dito alguma coisa, gritado alguma coisa, deve ter perguntado se eu fiquei maluco. Não lembro. Lembro apenas que rodei o braço que ele esteve agarrando, passando eu a agarrar o braço dele, e como se fosse um passo de tango, trouxe a minha perna esquerda pra trás da perna esquerda dele, puxando, enquanto o braço esquerdo dele era empurrado pra trás. Só quando ele bateu as costas na calçada, eu comecei a ficar consciente de verdade.
As pessoas estavam prestando atenção, ao nosso redor. O olhar do seu Ulysses era de uma fúria assassina. Ele se levantou com a vista fixa em mim, e me carregou para a outra esquina como se eu fosse um bandido, indo para a cadeia. Chamou um táxi, me levou pra casa da minha mãe e não me lembro se falamos alguma coisa. Acho que não. Havia uma exclamação tão grande entre nós que não podíamos falar.
Entrei em casa, deixei o cartão do plano de saúde em cima de algum móvel, e parei apenas pra telefonar. "Ari, tá em casa?" "Tô Valdo, atendi o telefone, né?" "Tô indo aí.", desliguei. Fui. Minha mãe chegou a me olhar, por um instante, mas não quis ou não pôde, falar nada.

Ariana estava curiosa comigo. Nunca tinha me visto daquele jeito antes. Eu falava, eu respondia, eu contava coisas dos colegas do colégio, mas eu não estava ali. Piscava os olhos de repente, e percebia que olhava para um objeto qualquer há tanto tempo que os olhos ardiam. Ria de nervoso, e não de achar graça.
Ela não fez perguntas. Mas não por respeito, ela não era assim, mas por não saber o que perguntar.
Decidi ir embora, fiz o gestual todo, mas quando ela se levantou, eu pedi um abraço. Ela, compreensiva, mas sem entender nada, abriu os braços. Vi, sem abaixar a vista, os bicos dos seios através da camisa de algodão, as pernas saindo de dentro do short, os pés gordinhos descalços. A cintura. A penugem loura do rosto, os olhos azuis que pareciam de mentira, lindos de doer. E devagar como quem entra num banho quente, abracei Ariana. Uma ereção lenta e intensa pedia licença dentro das minhas calças. Meu coração estava entre parada completa e taquicardia, sem escalas.
Minha boca roçou a lateral do pescoço, de leve, sentindo com aquele tato mais detalhado a textura da pele, e aquele cheiro, aquele cheiro maravilhoso, maior que a vida, o cheiro dela, ocupava minhas narinas ofegantes e ansiosas. As duas mãos se apoiavam na coluna dela, sentindo cada músculo que a apoiava de pé trabalhando. O cheiro dela, ali perto da nuca, adquiriu uma tonalidade acre, que eu não entendi mas era ainda melhor do que antes. O corpo dela estava falando com o meu, e a consciência das mentes não tinha nada que fazer ali. Meu corpo respondia, com meu pau ganhando a maior dimensão que eu jamais podia imaginar. A fimose parecia que ia estourar sozinha, mas não se engane em pensar que doía. Ou, se doía, eu não estava notando.
Os músculos da coluna dela mudaram sutilmente de posição, e uma joelhada me acertou os testículos. A dor me tirou do corpo. Sério, eu vi toda aquela cena de cima, vi minha expressão idiota, enganado, e senti o ar de divertimento dela, a cretina da Ariana. Ela transformou aquele momento de pura sensação num palco estrelado de dor, e ria disso. Ria cada vez mais alto, enquanto eu voltava pro corpo, sentia de volta o peso da minha carne, a inconveniência da minha forma, a rejeição. Eu não era bem-vindo como seu amante, e ela transformava seu gesto de rejeição numa brincadeira, porque minha amizade, essa sim, era bem-vinda.

Sua risada me lembrava alguém, enquanto ela socava meu ombro numa saudação escandinava escondida em seu DNA. Levei muito tempo para perceber como ela era parecida com a Sigourney Weaver, inclusive porque a referência da época era Aliens. E os olhos dela eram cor de avelã. Isso mudava muita coisa, mas era tudo.
Fui pra casa, depois de alguma despedida. A cabeça estava nas nuvens, porque pela primeira vez, sabia onde queria estar. Sabia o que queria da minha vida, qual era minha luta e minha saga, e pela primeira vez entendi que lutaria para sempre pelo direito de me sentir bem-vindo. Lá, onde poderia me sentir em casa como nada no mundo me faria sentir.
Claro que estava irremediavelmente apaixonado, minha cueca estava melada com essa informação, meu corpo inteiro precisava se entregar e esquecer que havia morte no mundo, Sir Laurence que visse sua própria luz: eu sabia o que queria, e ali comecei a virar homem.
Descendo a Mem de Sá, de noite de novo, lá estavam os travestis, e dessa vez eles mexeram comigo. "Oi, gatinho", e convites mais detalhados passavam pelos meus ouvidos como se fosse um batismo: ali estava um homem, pelo padrão deles também.
Chegando em casa, embaraçado, cansado, cheio de coisas para pensar no banho, com aquele novo cheiro da Ariana dentro das narinas, minha mãe me dava o recado: outra consulta, terça-feira que vem, com outro médico. Aquela primeira consulta tinha sido inconclusiva.
"A da semana que vem é com um doutor chamado Flávio", disse minha mãe, perscutando minha reação, que era alívio: fosse quem fosse, aquele miserável não se chamava Flávio, e isso era tudo que eu precisava saber.
O recado tinha ainda um subtexto: "filho, entendo sua reação, mas temos que examinar você direito. Você ainda é meu filho, e sou responsável pelo seu bem estar. O que passou, passou."
Se fosse diferente, ele nunca mais ligaria para mim, nunca mais veria a cara do seu Ulysses Tranho na minha vida.
O mundo, de jeito torto, fazia sentido. E eu precisava conquistá-lo.

terça-feira, janeiro 19, 2010

Batizado (Ou: amor dói) parte 2

No capítulo anterior, os responsáveis pelo Estranho aqui tinham votado pela intervenção clínica, à revelia.
Mas Ariana havia tomado uma decisão, pelo lado dela: pediu que eu fosse até a casa dela.
Chegando lá encontrei com a mãe, dona Ana, que mal falava comigo ou com a própria filha. Cuidava bastante do próprio trabalho, de tradução, lia muito e passava a maior parte do tempo em casa trancada no próprio quarto. Que, por sinal, era fechado a Papaiz, aquela fechadura de quatro códigos. E esse era o sintoma que dava um ar de seriedade às arruaças que a filha narrava. Isso e um certo ar de alívio quando ela abria a porta e via que era eu...
Ariana preferia esperar que nós aparecêssemos para ajudá-la a comer as refeições macrobióticas da mãe. Lembro que estamos falando do ano de 1990, e tudo que se chamava "macrobiótico" aqui era na verdade "com gosto de terra". Eu que sempre fui um português bom de garfo, que gostava até mesmo de chupar ovos crus direto da geladeira, sentia uma grande dificuldade em encarar aquilo. Mas enfim, o que quis dizer é que ela esperava que aparecêssemos, não nos ligava regularmente. Esse dia ela ligou.
Tinha aquele brilho particular no olhar, e logo que nos livramos do macrô, ela foi direto no quarto, colocou uma roupa qualquer, uma mochila e saímos pra rua. Perguntei o que era aquilo e ela disse, "quero chocolate". O resto do tempo, conversava distraída sobre qualquer bobagem. Fui levando.
Saímos de lá pra Mesbla, que era ali perto, o edifício ainda hoje está lá; e nesse dia eu aprendi com a Ariana a roubar chocolate das lojas.
Foi a coisa mais simples do mundo, ela com a mochila em um só ombro, abria o zíper, e sem olhar sequer para os lados, enfiava duas ou três barras lá dentro, daquelas que tinham 200g. Hoje, seriam as de 170g. Eu, que tinha desenvolvido cleptomania aos oito, e logo em seguida retraído quando fui pego pelo pessoal do mercado, suava em bicas. Nada de mais, suar em bicas sempre fez parte do meu charme. Mas eu tremia tanto que não aguentaria nem um gato morto pelo rabo.
Saímos rindo, nervosos, da Mesbla, e começamos a andar pelas ruas do centro. Quando ela olhou para mim, vi em seu olhar, naqueles olhos azuis, que éramos cúmplices. Senti uma confusão de sentimentos, e imaginava todos os finais possíveis para aquela situação, desde começar a ter superpoderes, até começarmos um namoro. Estávamos no Largo da Carioca, nos sentamos e ela me explicou que o Valdir tinha ido na casa dela, levado uma fita K7 do Legião pra ela escutar, e se declarado pra ela. Eu perguntei, "e daí? Vocês..." e ela respondeu tudo. Não, não estavam nada juntos, ela ficava com um sujeito lá do colégio dela, que por sinal a mãe odiava, e que seria complicado pra ele, o cara do colégio dela, entender que ela sequer via outros garotos: ele era muito violento.
"E se um dia ele me vê te cumprimentando?" eu perguntei, na verdade já antecipando que o final daquela conversa não seria bom. Ela explicou que ele já me conhecia, e não tinha opinião nenhuma sobre mim. Eu podia ir e vir onde quisesse, podia até dormir na mesma cama que ela, que ele tinha certeza que eu não ia fazer nada. Na galera dele tinha um cara assim que nem eu, um banana, não saberia o que fazer com uma garota nem que ganhasse um manual sobre o assunto. Ariana contou isso rindo. Em tom de concordância.

Em minha defesa, posso afirmar que na minha fase das manias, lá aos oito anos, quando fui convencido por uma coifa laminada se aproximando da minha mão a não cultivar a cleptomania, parti para a leitura, e nisso devorei obsessivamente metade da biblioteca da escola municipal onde estudava, inclusive o relatório Kinsey de cabo a rabo; sabia mais sobre corpo humano, sexualidade, orgasmo, sexo do que o tal carinha saberia em toda uma vida. Em teoria. Na prática, ele certamente me daria uma surra. A maldita "pegada", que tanto se fala hoje em dia. Nunca tive.

Ou seja, para Ariana eu era um pouco melhor que um urso BlauBlau: eu retrucava. Engolindo o significado daquele esclarecimento, tive que perguntar, "e quanto ao Valdir?" para ganhar tempo mais do que ouvir a resposta.
O Valdir ganhou um beijo de selinho dela, um abraço bem gostoso, e ela pediu que ele parasse de vê-la por um tempo. Mais tarde, quando perguntado por mim, ele fez questão de insinuar, que "rolou alguma coisa", indicando que pode ter havido sexo, ou o tal beijinho, eu que escolhesse o que acreditar. E que não queria saber mais dela, tinha uma outra mina em vista; nem vou comentar sobre a Cleide, ali mesmo na época o meu amigo estava obviamente tentando se afirmar como um garanhão. Que não era, mas vamos lá, ele tentou com decência. Alguma.
Agora éramos só eu e Ariana. Mesmo sendo um urso de pelúcia falante, dane-se, tínhamos privacidade. Voltamos pra casa dela, e já experimentávamos a liberdade de ter o quarto dela só pra nós, aquele cheiro dela em todos os lugares e coisas. Eu podia esbarrar nela acidentalmente, podíamos começar guerras de travesseiros, o mundo fazia sentido.

Voltei pra casa, feliz, excitado, toda uma vida pela frente. Estava anoitecendo. Foi descendo a Mem de Sá, na altura da Lavradio, que o moleque passou por mim, rasgando a alça da minha mochila e correndo à toda para a mesma direção que eu ia. Ali naquele pedaço, era zona de travestis. A delegacia ficava a duas quadras, mas nada se fazia que envolvesse policiais naqueles lados. Pois é, o garoto deu uns três, talvez quatro passos largos, naquela correria com minhas roupas sujas da ACM, e foi pego por uma loira de longas madeixas, de um metro e noventa. Pego pelo pescoço, suspendido no ar enquanto as perninhas balançavam. O loira encarou os olhos do moleque, bem lá dentro, e disse pra ele "roubar aqui NÃO", numa voz tão grossa que um dia eu queria ter uma assim. Eu senti medo, imagine o moleque. Deve ter se borrado nas calças. Largou a mochila, e quando foi respectivamente largado, continuou na mesma corrida de antes, só um pouco mais motivado.

Reavida minha mochila, cheguei em casa, só para encontrar dona Patranha, com ar grave, me comunicando que teria médico no dia seguinte, meu pai iria me levar. "Que médico?", perguntei. "Urologista", ela respondeu. "Agora toma um banho e vem jantar. Que que houve com sua mochila?".

*** CONTINUA ***

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Batizado (Ou: amor dói) – parte 1

Meu nome é Osvaldo Espinoza Siqueira Tranho. Isso mesmo, O ESTranho. Acerte-se com o meu pai se você quiser saber o porquê desse nome ridículo, mas o sobrenome pelo menos é inevitável. Sou descendente da família Tranho, oriunda de alguma região escondida no meio de Portugal, e devo ser um dos cinco no mundo a não ter um sobrenome "natural", como Figueira, Pessegueira, Silva, Oliveira. Esse sobrenome veio lá dos cafundós da Idade Média, quando aquela região da Europa era uma colcha de retalhos com quatro casas em cada "país", ou condado, ou sei lá como era aquela bagunça.
Sinceramente deveria saber mais sobre essa parte da minha vida, até porque de repente posso ser o único herdeiro de um terreninho com uma árvore podre e uma casa de pedra. Mas preferi esquecer essa brincadeira bastante tempo atrás, como coisa de moleque.
Estive me lembrando desses pedaços movimentados da vida, quando a gente começa a perceber o mundo, a conhecer o que vai querer da vida, enfim, quando a gente começa a deixar de ser bobo. E nesse reviver, lembrei de Ariana.
Ela tinha esse nome mesmo, e deve ser por ter nascido no signo de Áries. Ou porque era loira de olhos azuis, e fiquei até com medo de perguntar se tinha a ver com a raça pura ariana dos nazistas.
Disse que era loira, disse que tem olhos azuis, ela. O que falta dizer é que, naqueles treze-catorze anos que tínhamos, lá na virada da década de 80 para 90, ela parecia uma miragem: não se vê aquele tipo de garota pelo Rio de Janeiro, facilmente assim. Aquele vívido brilho no olhar, olhos grandes, que prestavam atenção em todo mundo, ria que nem garoto, falava palavrão. Nos conhecemos na ACM, eu ela e um outro amigo, o Valdir.
Eu e o Valdir éramos os únicos naquele tempo que líamos gibis, antes de exisitir o colecionador, o crítico, as mostras de arte. Era puramente escapismo, e dali a gente já sabia que até os funcionários das editoras não se levavam a sério. Mas a gente viajava nas histórias, saboreando a idéia de ser um super-herói, se descobrir um dia dono de uma mutação impressionante e cheia de efeitos, de preferência alguma coisa que mudasse a forma do corpo ou que soltasse raios. Nunca, mas nunca imaginaríamos o dia da Marvel valer 4,5 bilhões de dólares ao ser vendida para a Disney.
Então já dá pra se ter uma boa idéia, certo? Nossas conversas eram sobre o que o Wolverine fez, como o Ciclope era sério, o Xavier era o mentor de todos os loucos do mundo, mas também falávamos de garotas.
É trabalhoso para um garoto nessa idade não se interessar por praticamente tudo que fosse do sexo feminino ao redor. E a gente se conheceu, e se encontrava, na ACM, que na época favorecia a imaginação com um uniforme parte lycra, parte algodão branco, que não podia molhar de suor porque senão ficava transparente.
O uniforme masculino, por outro lado, nos desfavorecia imensamente, porque o short era de um nylon finíssimo, branco ainda por cima, com a resistência de uma camisola. Ou, se preciso explicar melhor, um traidor, expondo qualquer maior entusiasmo que pudéssemos ter. E contendo nossos movimentos, porque qualquer pulinho atrás de uma bola e lá se davam as badaladas.
Mas então, falávamos de garotas. E admirávamos várias, debatíamos onde e o que todas elas tinham feito, se tinham namorado, se iam namorar, se tinha chance de chegar perto. E no meio delas, um dia como outro qualquer, surgiu Ariana.
Difícil elogiar forma do corpo, quando ainda está em desenvolvimento, e ainda por cima com nosso senso crítico nulo; mas ela tinha um belo par de pernas, e não tinha medo de usá-los. Os seios, pequenos como todas as outras: um processo em andamento. Mas o que nos arrebatou, a mim e ao Valdir, era o cheiro dela.
Num raio de dois metros ao redor dela, tinha um cheiro parecido com o de capim-limão, mas como se fosse mimetizado por glândulas, e não o original. Era um marcador olfativo, porque pegava em tudo que ela tocava por algum tempo. Às vezes ficávamos nos entreolhando, porque o cheiro dela já tinha chegado e ela não, ou ficava quando ela tinha partido. Ou estávamos apenas imaginando. Mas quando percebemos que aquele era o cheiro dela, e só dela, acabou o mundo: estávamos fisgados.
É muito gostoso sentir todos os cheiros de cada mulher que passa pela nossa vida, mas tenho que pedir desculpas a todas as outras: a única dona de um cheiro do qual posso me lembrar vinte anos depois de conhecer é ela. Só ela.
Não demorou muito, e começamos a travar contato com ela. Parávamos depois do vôlei no restaurante que a ACM Lapa tem até hoje no térreo, pagávamos refrigerantes só pro papo durar mais, e depois que ela se despedia da gente ficávamos andando que nem uns bobocas ali pelo Centro mesmo, raciocinando sobre o papo furado de agora há pouco como se fosse o Genoma Humano, precisando ser decifrado apenas por nós. Tentando extrapolar idéias que nos dissesse mais sobre ela do que tinha-se dito. Imaginando quando e se ela se dignaria a... quem sabe... qualquer coisa. Um toque incidental, uma explicação durante uma conversa, tudo, mas tudo mesmo era analisado pela nossa falta de experiência.
Poderíamos ter nos desentendido, Valdir e eu, por causa desse interesse pela mesma pessoa. Mas simplesmente decidimos que nada era certo, e brigar por nada não fazia o menor sentido. Quando, pouco mais tarde, começamos a poder visitar a casa dela, a situação não se alterou muito: íamos os dois lá. Entrávamos e saíamos juntos.
Ariana, claro, adorava. Tinha seu séquito particular, admiradores que se contentavam com a simples existência dela no mundo. Podia contar as histórias que quisesse, podia dizer que foi à Marte de barco, e nós dois lá, admirados com nossa heroína. Absorvendo qualquer bobagem, ouvindo qualquer história como se fosse a nova Bíblia ditada por Deus em pessoa para seus apóstolos. Não paramos nem quando ela começou a falar das inúmeras drogas que tinha tomado, e tomava, e tinha em casa e tudo. Se fôssemos levar a uma análise séria tudo que ela disse que tomou, era caso de internar aquela menina.
Até ela começar a falar de sexo.
Ela nos contou quase que passo a passo como o garoto do colégio dela se aproximou, o que ele disse, o que ele fez, onde ele a levou, que era um motel lindo, que ele era mais velho e podia entrar lá com o carro de um parente. Curiosamente, ela não entrou em detalhes sobre o que entrou aonde, quantas vezes, se doeu ou foi bom, até nós, muito constrangidos, começarmos a perguntar. Sobre a perda da virgindade em si, a narração dela foi como Godzilla invadindo Nova York: não apenas era uma criatura à parte, o membro do sujeito, mas ele a deixou em escombros. E grávida. E ela teve que tirar o feto numa clínica, paga pelo pai dele, com uma ferramenta que parecia ser uma chave hidráulica de encanador. Uma semana depois de terem consumado o ato.
Hoje, aqui do alto da minha "enorme" experiência, ouso dizer que ela esteve apenas aprendendo a botar banca. Nos testava em tudo, examinando quais histórias a gente engolia de uma vez, e quais partes a gente se perdia em perguntas.
Ali, naquela noite, eu comecei a examinar a sério a história de se fazer sexo. É bem bacana imaginar que vai fazer, com quem, o que, onde. Mas de fato estar com outra pessoa na cama, isso foge do escopo de um garoto nessa fase. Comecei a me examinar no espelho, regularmente. A encolher barriga. A lamentar, com muita força, que minha caspa me deixasse tão com cara de alienígena.
E comecei a passar bastante tempo no banheiro, examinando ele. Sim, ele, o amiguinho lá embaixo.
É que eu tinha fimose. Uma pele que deveria abrir, para dar passagem à glande, dita cabeça, mas não abria. Apertava. E numa ignorância típica da idade, puxava para tentar afrouxá-la. Nisso que puxava e soltava, evidentemente, a excitação acontecia. E eu, o Estranho, descobri o mundo divertidíssimo da masturbação.
Não precisava de muita coisa: era tão sensível a estímulo, que algumas vezes de pensar, ele já se endurecia dentro das calças, e alguns passos a mais davam conta de me deixar melado, o atrito das cuecas já era quase o bastante. E tinha que me apoiar em algum lugar, que as pernas bambeavam de verdade. Cheguei a vacilar e cair, um par de vezes.
Se era assim na rua, onde ficava andando meio dobrado com medo de exibir minha vigorosa (ainda que pequena) ereção, imagine o que se tornaram meus banhos. Podendo usar sabonete. Podendo olhar para ele. Podendo ver como era. Uma melequeira danada. Horas de banho. O único senão era que não poderia fazer barulho, imagine minha mãe, dona Pastranho (Patrícia Espinoza Tranho) entrando no banheiro atrás dos meus gemidos, pra acudir ao meu suposto mal-estar.
Por alguma estranha razão, eu e Valdir atingimos este lindo momento da puberdade ao mesmo tempo. Os peitos empedrados, as olheiras, os pêlos faciais começando a aparecer (mais ainda nele que em mim, tardio que sempre fui), todos sintomas mencionados nas provocações de vestiário, atentamente ouvidos e fingidamente ignorados, nos disseram que podíamos confiar um no outro para debater as mudanças.
E, claro, para usar essas mudanças em um alvo específico: a sábia Ariana, conhecedora hábil dos caminhos e descaminhos da alcova, nossa amiga, fêmea.
Valdir engrossou a voz de um dia para o outro, simplesmente. O bigode, todo ele brotou no intervalo de uma semana. Para piorar, ele seguia o biotipo de indiano, aquele cabelo preto e liso à toda prova, olhos cristalinos e tom de moreno que nunca mudava. Comparado com ele, eu era um engano hormonal. Tinha espelho em casa, e tudo mais. Nunca teria chance.
Ainda assim, ele foi cavalheiro de debater comigo. Eu capitulei logo no começo da conversa, entregando a ele a oportunidade de se entender com nossa musa inspiradora de tantas noites (e manhãs, e tardes...) para um avanço nas relações de modo a incluir intimidade maior. Ele sem titubear botou o time em campo.
Lá em casa, seu Ulysses e dona Patrícia, separados há dez anos, conversavam por telefone sobre as mudanças recentes na fisiologia do pimpolho resultante da vencida união que eles tiveram. Sei lá como ou onde, minha mãe conseguira observar (eu sempre fui muito tímido, mais ainda nessa fase) que o prepúcio não permitia o desenvolvimento completo do aparelho reprodutor. Fazia-se necessária uma intervenção, e médica, para resolver esse problema. O quanto antes.
Se quiser rir um pouco, entenda que meu pai nunca perdera o sotaque da Terrinha. Imagine que diálogo foi esse, aos berros (a companhia telefônica, Telerj, era uma lástima em qualidade), do lado dele.
– Ó P'trícia, este menino tem que poire de lado uma parte do pinto!
– Mas que mal há nisto? Os judeus fazem isto o tempo tódo!
– Não me interessa se fazem aos três dias de idade, aos três anosh ou aos trinta! É o mesmo pedaço que corta, quero lá saber se faz diferença, ó pá!


*** CONTINUA ***

Mulan, o curta

Uma vez a gente ficou imaginando que desenho da Disney nos representava. Eu disse que ela com certeza era a Bela, porque adorava ler, ad...