segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Amor Dói: Revanche (4)

Foram três dias de banho na base da esponja, usando cuecas. Mas hoje, eu tinha que reagir. Era banho de chuveiro ou nada. Afinal, hoje eu estava liberado para pequenas caminhadas. Não que eu esteja querendo, aqui, valorizar uma cirurgia tão elementar, mas é que foram dezenas de pontos numa região no meio das pernas, então  realmente não convinha repuxar nem um pouquinho com alegres caminhadas. Especialmente eu, que já sabia de outros acidentes que cicatrizava com quelóides expressivas e fartas, meu joelho que o diga.

Dona Patranha me olhou, antes que eu entrasse no banho, e com aquele radar infalível, materno, fulminou:
– Você vai visitar a Ariana, né?

A minha perplexidade respondeu a ela melhor que palavras, pois ela se afastou com o seu registrado "ai, meudeush" de tantas vezes que me julgava à beira de um precipício. E, claro, foi preparar o remédio para todas as ocasiões: comida.

Entrei no banheiro, tirei a roupa e o curativo, e fui pro chuveiro.

A água foi descendo pelo meu peito, escorrendo normalmente, mas para mim em câmera lenta, até que passou do umbigo, cruzou a pelve, e moldou meu membro em recuperação numa escultura corrente, a dor fazendo mais parte da minha imaginação do que da realidade.

Deixei a atenção nele um pouco de lado, e realmente tomei banho, sabonete na pele, água... Até que uma sensação lancinante apareceu, quando a espuma começou a percorrer todos aqueles pequenos buraquinhos de ponto, e o corte. Para meu pavor, a água descia vermelha.
Naquele momento, uma leve náusea tomou conta de mim. Eu valorizava bastante o que estava em jogo, entendam. Com o perigo aparente, a dor parou, e uma capacidade analítica surgiu acima do suave embotamento do antiinflamatório. Um Osvaldo muito calmo, dentro de mim, notava que a água descia colorida, sim, mas de um tom alaranjado. Portanto, estávamos falando de uma diluição de povidine, e pensando bem, talvez um pouco do sangue pisado também estivesse descendo com a espuma. Não precisa ter pânico. Era a caixa, testando o príncipe, para que ele se tornasse o Muad'Dib um dia.

Juntei as mãos e fiz uma concha embaixo dele, deixando apenas a água limpa envolver. É, era o povidine mesmo, que besteira a minha. Sujeito mais apavorado. E naquele momento pude encarar a situação.

Eu imagino que seja algo meio tolo, a essas alturas do campeonato descrever um pênis, mas pode ser que uma ou outra pessoa ainda não tenha visto um, ou faça muito tempo desde o último, então vou fazer um pequeno esforço, para ajudar a descrever o que vi.

Imagine que alguém tenha feito um Darth Vader de carne e forrado com pele na parte que teria a capa. Imagine que a capa na verdade está fechada, do pescoço pra baixo. Vire este boneco de costas para você, e temos uma descrição do que vi entre minhas mãos. Em miniatura, claro. Era a primeira vez na vida que via minha própria glande, antes sempre encoberta. No caso em questão, com a água fria, o medo, e uma natural desvantagem propiciada pela minha natureza genética, parecia uma criatura frágil e incapaz de sobreviver por muito tempo. Estava esbranquiçada, talvez pela recuperação, talvez pela posição inerte em termos de funcionamento.

Os pontos era parecidíssimos com uma coroa de espinhos, e não quis muito assunto com eles(embora tenha imaginado rapidamente alguém decapitando o Darth Vader e costurando o pescoço dele de volta com arame farpado). Mas me lembrei que o bom doutor mencionara uma certa área de cabresto, abaixo da  glande, e passei um dedo sobre ela. A água escapou da concha, e a resposta que meus nervos deram foi alucinante. Percorria todo meu corpo! Aquele pequeno conjunto de nervos, tão perto da costura que na verdade tinham até mesmo um ponto sob eles, me faziam reflexos da ponta dos dedos do pé até a nuca!
Meu rosto ficou quente. Ansiava explorar aquele contato, aquele terminal que mexia com toda uma fiação dentro de mim, e nesse microssegundo entre a experiência e suas possibilidades em minha mente, alguma válvula se abriu, e um pouco de sangue começou a ser injetado onde não devia.

Ainda atônito, comecei a sentir ali a força da costura dos pontos, apertando a carne como um aviso. Olhei pra cima imediatamente, e comecei a imaginar cenas terríveis de acidentes, carnificina... Lembrei da minha visita ao IML, o corpo diante de mim, e ainda não sentia o sangue parar de ser bombeado. Carne morta virava rapidamente carne viva na minha imaginação, o instinto urgente de dentro de  todo animal neste mundo gritando para ser realizado, a vontade de obedecer à natureza ignorando detalhes da situação.

Vi dentro da minha mente, o lado bicho. Ele queria se realizar. Queria acontecer. Porque a demora? Porque imagens de simples caça? Reproduza! Exerça! E então pude dar a ele a imagem certa: me imaginei diante de uma mulher, anos no futuro, exibindo um pau terminando em nada, e imaginei essa mulher reagindo com risos. Imaginei outra reagindo com medo. Imaginei várias, todas e cada uma nos rejeitando, infinitamente. E finalmente consegui convencer a besta a recuar.

Suava frio. Terminei meu banho, me enxuguei com cuidado e escolhi uma calça e uma camisa pólo. Antes até de ver Ariana, queria ver as ruas do Centro do Rio. Me sentir livre, ainda que um pouquinho só. E o resto que se ajeitasse, vamos ver.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Amor Dói: Revanche (3)

O antiinflamatório estava me deixando mole e com sede. O que quer dizer que toda hora levantava, ou ao banheiro, ou à geladeira. As horas foram ficando doidas. Ler era impossível. Tudo parecia confuso e interminável. A dor foi virando um hábito, trocar ataduras dava trabalho, e eu comecei a rir ciclicamente da imagem de boneco vodu de múmia que eu tinha que tratar. A cicatrização era um enigma, porque os pontos eram escuros, o sangue era escuro, o povidine era escuro e no meio daquilo o que ia sobrar era um enigma.

Era de tarde quando o Valdir apareceu. A gente se via de vez em quando, esses tempos. E falava dos nossos assuntos, ainda mais que ele era o feliz dono de um MSX da Gradiente, equipamento irado para acessar um mundo novo de possibilidades... Nossa isso era papo pra mais de metro.

Até que o assunto virou Ariana. Na época, a indiferença dele parecia genuína. Quando a gente fica mais crescidinho, vai entendendo que isso pode ser um desdém de quem quer comprar. Mas ele só ouvia, enquanto eu contava sobre minha epifania na sala, um dia antes da cirurgia. Quando eu não tinha mais o que contar, ele só me deu o conselho padrão. "Essa garota te arruína, cara. Ela não pode ficar contando com você sempre por perto."

A gente discordava disso. Eu adorava Ariana, era uma fonte de alegria estar do lado dela o tempo todo. Ele sempre me lembrava que o mundo estava cheio de garotas legais, tinha até aquela Viviane lá da ACM que de vez em quando conversava comigo. É, verdade, mas a Viviane era linda demais pra querer alguma coisa comigo. Além disso, a nossa afinidade era por conta de uma suposta ascendência judia na minha família, muita gente pensava que eu tinha algum pé com o Povo. Até o Geraldo (um cara do meu colégio) achava isso, mas no caso dele isso era um demérito; ele tinha uma certa tara pelo nazismo, e sentia ciúmes da minha amizade com o Heinz. Queria convencer o Heinz a contar o que o pai dele sabia da época de Hitler, e achava que a coisa não progredia porque eu usei minha "manipulação hebraica de culpa" na mente dele.

Fiquei feliz com a mudança de assunto, afinal o Heinz era um dos poucos amigos que eu tinha, além do Valdir. Entrou no meu colégio logo depois da saída dele, então eu colocava um a par do que o outro fazia. Além disso, o Heinz era mais parecido comigo nas dúvidas, e nas leituras. E o avô dele tinha sido de um partido de oposição ao nazismo na época do Governante...

Eu sei que estou narrando esta parte em porções esparsas, mas isso dá uma idéia da transição que senti naquele dia. As idéias iam e vinham, a consciência também, e num desses cochilos percebi de repente que o Valdir não estava mais lá.

Em algum momento no meio desse devaneio, o segundo dia de recuperação virou terceiro. Ariana, Valdir, Geraldo, Viviane, o pequeno grupo de testemunho da minha passagem pela vida, apareciam na minha imaginação lentamente, sem nada dizer, sem muito o que resolver.

E estava um calor dos diabos.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Amor Dói: Revanche (2)

Dor. Eu sei que deve parecer chato falar tanto assim dela, mas antes de acordar direito, ela se agarrava em mim, com uma urgência, uma premência! Nada antes parecia tão terrível, aquela mordida em mim permanente, uma ameaça a mim!

Chutei o lençol para fora, como se pudesse fazer alguma coisa a respeito, e olhei para dentro da minha bermuda. Minha múmia em miniatura estava tentando uma ereção! E vagava, perdida, entre minhas pernas, buscando cegamente um caminho para cima que era melhor ela não achar! Eu via as pulsações, e sentia a cada pulsar o anel de pontos apertando... cada vez mais...

A cada manhã, desde que começara a minha puberdade, a ereção matinal era um ritual secreto meu, uma promessa de felicidade num futuro que não tinha data no calendário. Cultuava a capacidade de ser feliz um dia que aquilo representava. Hoje, esse momento feliz poderia ser meu fim, ou ao menos eu pensava isso.

Percebi que a essas alturas, eu acordado, já seria de se esperar que estivesse completamente inflado. Mas o curativo retardara o processo, segurando quase por igual em todos os lados ao mesmo tempo.

Ainda assim, ele avançava. A pele repuxava, um pouco nos pontos, um pouco na cola do esparadrapo, mas mesmo as pontadas cada vez mais intensas não esmoreciam a tentativa de chegar ao céu. A cabeça começava a raciocinar contra, mas o corpo não estava nada disposto a obedecer. Ainda estava despertando, e promovia a ereção iminente como o ritual de sempre.

Comecei a imaginar cenas de horror grotesco. Não tive muita ajuda, porque logo de cara os filmes de Woody Allen, muito populares na época, vieram à tona. Tudo que você sempre quis saber sobre sexo, mas nunca teve coragem de perguntar, quem diria, agora parecia um filme sexy!

Ok. Um suor frio começou a escorrer da testa. Isso significava que meu cérebro estava entendendo a situação de perigo, em um nível mais direto, e tentava me acalmar. Mais uma vez, naqueles poucos anos de vida, eu sentia o cheiro do meu medo, ao mesmo tempo que tentava entender como tanto conhecimento de medicina estivera morando em mim esse tempo todo.

Medicina! É isso! Pra feira de ciências daquele ano, eu fiz um trabalho sobre o cérebro humano, e como meu colégio pecava em provisões de laboratório, eu me meti dentro do IML para conhecer de perto o meu objeto de estudo. Um perito encarregado, ao ouvir meu pedido, sorriu por baixo do bigode grisalho, antevendo minha reação ao que ele poderia me mostrar. Era um negão super gente boa, com fala mansa, aquele tom de voz que o Barry White sabia fazer, e tentou com umas três perguntas me dissuadir de ir pra sala do morgue. Eu até estava tenso com a preocupação dele, mas por mim, nada me preocupava.

Seguimos pelos corredores escuros, mal iluminados. O IML era tudo que se precisava para um filme de zumbis. Era mal preparado, fedia muito, era sujo. E as pessoas que estavam ali por motivos menos científicos que os meus, pausavam lentamente seu luto para olhar aquele moleque andando atrás do encarregado, indo direto para a sala onde se reconheciam cadáveres. E eu ia. Um corpo estava sendo preparado para uma turma de medicina que chegava dali a uma hora. Era um homem, mendigo. Morrera de inanição.

O nome do encarregado era José Pedro. Ele descobriu o corpo, e ficou esperando a minha reação de moleque assustado com um divertimento no olhar.

Não vou mentir: aquilo fedia mesmo. O rosto estava enrugado, e assim como as mãos erguidas, estava com uma expressão de última súplica. Não parecia uma pessoa mais, era um boneco. Como os manequins de loja. O abdome estava todo esticado e afundado, como se ele tivesse perdido os órgãos internos da barriga. Era realmente um zumbi de filme. E já tinha sido um pouco aberto.

Seu José me explicou que tiveram que abrir para confirmar a causa mortis, mas o crânio tinha sido aberto para a aula a seguir. Eu hesitei em pôr as mãos no tampo, que estava apenas encaixado, mas só porque a caspa do mendigo parecia pior do que a minha. Com um quê de surpresa, seu José captou minha intenção e, incrédulo, me ofereceu um par de luvas de látex, me explicando que eu teria que ter certeza de que ia usar: as luvas não eram fornecidas pelo governo, eram compradas pelos médicos, e seria triste ver desperdício de uma única que fosse. Confirmei.

Antes de ir ao meu intento, passei a mão pelo rosto do cadáver. Ainda estava experimentando o tato com as luvas, folgadas pra mim, e queria saber a consistência daquela pele que parecia de cera. Quando toquei o rosto, o tampo se abriu, porque a pressão que o continha era muito tenue.

Observei a consistência rugosa do crânio, com algumas membranas de gordura meio soltas, e vi o molde daquilo que procurava, a massa cinzenta e cheia de nervuras que podia imaginar guerras, amor, poema, receitas de culinária, tristeza, alegria, movimento... e agora estava ali, indiferente, pronta para uma função muito diferente de quaisquer outras que tivesse durante a vida: o esclarecimento.

Aquela lembrança tão detalhada, profunda e macabra, daquela manhã no IML, começou a fazer efeito. Uma paz se fazia sentir, e minha parte convalescente começava a se aquietar. A bandagem estava branca, ótimo sinal. O que quer que tenha me doído, não tinha sangrado tanto a ponto de me assustar. Entendi que estava com muita vontade de ir ao banheiro, e fui sem maiores problemas. E voltei para minhas lembranças.

O engraçado com ambientes limpos à base de formaldeídeo é que o cheiro vira automaticamente uma memória viva. O que quer que tenha te feito cheirar formol, faz com que esse cheiro se entranhe na mente, sem escalas. E com ele, tudo que você fez naquele lugar também ganha um lugar de honra nas suas memórias. Sério. Não importa se você namorou a menina mais linda do colégio, não importa se um teatro de 400 lugares lotados te aplaudiu, não importa se você trocou de corpo ou viajou no tempo, aquele cheiro fica à sua disposição para sempre. Tudo que ele abarcar também.

E eu voltei na lembrança, para ver de novo a expressão de curiosidade de seu José sumir aos poucos, dando lugar à incredulidade. Ele estava assistindo enquanto eu tocava no cérebro exposto à minha frente. Eu tentei, com sutileza, separar os nódulos na região central do cérebro com o dedo, e não conseguindo, desisti. Foi quando aquilo aconteceu.

Cutuquei uma parte mais traseira do cérebro, com aquele mesmo primeiro intento, e o cadáver reagiu. A mão direita afrouxou um pouco mais a postura de garra, e um suspiro longo e suave saiu da sua boca. Seu José arregalou os olhos, e começou a se aproximar de mim com a clara intenção de acabar com aquela loucura. Eu segurei o tampo solto, e decidi deixá-lo devolver ao lugar de origem. Estendi para ele, e na perplexidade com minha calma, ele o pegou e se posicionou para colocar. Olhava para mim enquanto fazia isso, e acabou encaixando invertido.
– O que foi isso? perguntei, apontando para a mão.
Com um assunto para ocupar a mente, ele respondeu de uma vez.
Rigor mortis. Assusta gente com o dobro da sua idade. Ou mais velhos. Metade das aulas de anatomia nós temos que pegar um estudante que desmaia quando testemunha isso. Você sabia que ia acontecer?
– Bom, eu andei lendo sobre o assunto, tem alguns livros de anatomia no meu antigo colégio... E eu li Mary Shelley também, acrescentei – Frankenstein.
Enquanto discorria sobre pontos de estímulo, reações cerebrais, funções dos setores do cérebro, essas coisas que foram me caindo nas mãos erraticamente e eu armazenava ainda frescas, a expressão do rosto de seu José se aproximava do choque. Reagia cada vez mais mecanicamente, até que resolvi deixar ele em paz, e fui embora. Na saída, ele me recomendou não desistir da medicina, tentar um curso iniciante na Cruz Vermelha de primeiros socorros... Ia ver.

Ali, de pé no banheiro, pensava naquela expressão, assim como na incredulidade do diretor do colégio quando eu contei o que estava fazendo pela Feira de Ciências do colégio. Comecei a lembrar que a incredulidade ia passando de rosto a rosto, o colégio resolvera me ceder "material adicional" para o trabalho, consistindo basicamente de xerox grátis para meus panfletos e um cérebro de cerâmica. A professora de ciências passou no meu "stand" por 30 segundos, e anotou na ficha dela e no canto do meu trabalho "10, com louvor".

Com essas lembranças, percebi que tinha encontrado uma arma. Não sabia bem qual, ou onde e como usá-la, mas minha mente me dizia que havia um novo tipo de controle para trabalhar com as situações. No meio das minhas pernas, minha pequena múmia latejava lentamente, dor branda, em repouso. Os antiinflamatórios estavam funcionando, e isso me enchia de sono.

Mulan, o curta

Uma vez a gente ficou imaginando que desenho da Disney nos representava. Eu disse que ela com certeza era a Bela, porque adorava ler, ad...